O SEXO DAS COISAS


Para minha confusão juvenil, velhos e gringos sempre me curtiram. Acho que parecia antiga. Acho que parecia exótica. Era batata. Grupo de trocentas amigas de um lado e trocentos homens do outro. Se havia um primo ou conhecido gringo, ele vinha falar comigo. Passeei um bocadinho. E minha mãe me colocou no CCAA – the world is yours. E o mundo foi meu mesmo. Mas sempre peguei pra mim cada língua que aprendi. Dizem que o melhor é pensar em inglês (ou espanhol, francês, o que for), mas eu não consigo ao certo, acabo traduzindo, mesclando, dislexizando, um grande bololô linguístico. C’est yo! “Can you please eject the yogurt from the refrigerator?”, mandei certa vez e o rapaz disse que entendia o que eu queria dizer, mas que tal palavra não era usada para isso. Mas fiz valer minha ideia, enfim. Cinzeiros eram "where you put the dead cigars". E por aí vai.

Até que um dia os gringos começaram a me perturbar com perguntas que eu não sabia a resposta e não encontrava ninguém que soubesse: “Letícia, why television is a girl in Brasil? A televisão? How can I know that?” Porque os bichinhos usam 'it', né? Objeto é it, mó mão na roda isso. Porque é loucura mesmo, a gente só sabe de osmose demente social.

E daí adentrei no macabro universo do sexo das coisas. Brasileiras, claro. E percebi que há, de certa forma, tom sexual para o lance. Por exemplo: banheira é feminina. A banheira. Mas chuveiro, o que entra, o que mete, é menino. O chuveiro. Rá. Vai vendo. Tv é mulher. Mas filme é homem. Boca, guria. Dentes, rapazes. A boca. Os dentes. Viagem. Uma casa é menina, mas apartamento é menino. A mão, artigo feminino. O dedo, artigo masculino. Se liga. Eu me bolo.

Posso ficar horas, mas quero poupá-los desses minutos do meu banho ou do meu cocô amigo, ou da minha mania de ficar de cabeça pendurada na cama, irrigando o cerebelo e visualizando agora o sexo, o IT das coisas. 

Mas...

Mas algumas outras palavras, que não objetos, me perturbaram. Alma é feminina, mas corpo é masculino. Amor? Homem. Paixão? Mulher. Solidão também mulher. A solidão. Mas companhia também é. A companhia. Dor, vida, lágrima? Tudo menina. Sexo, choro, orgasmo? Tudo menino.

Nunca soube explicar para os gringos e nunca mais me apaixonei por gringo, o estreitamento com a língua portuguesa me enlaçou de tal forma que um homem que não pode me ler não vai poder me amar. Incluir preconceito meu aqui agora. Fica esse mistério. E nariz em espanhol é menina. E mar em francês também. Coisa linda o mar ser mulher. Nariz nem tanto.

E sobre os livros, homens. Mas as palavras e poesias, mulheres. Dentro. Dentro. Dentro.


Letícia Novaes é cantora, compositora e colunista do ORNITORRINCO.