COMO SUSTENTAR A ALEGRIA?


Em andanças por avenidas e elevadores, florestas e sítios, tenho estudado a expressão das pessoas alegres em busca da autenticidade dos seus sorrisos. Quero me aprofundar na alegria alheia para ver se lá atrás, no íntimo dos alegres, há contentamento puro ou se o que vejo é só aparência. Não faço isso por crueldade. Só desconfio e investigo os que sorriem demais porque, no fundo, o que quero é descobrir que estou errado ao desconfiar: preciso, para o meu próprio bem, ser convencido de que é possível sim transformar questões sem solução e insatisfações perenes em aceitação e agradecimento constantes. Nessa busca, tenho ficado especialmente encantado ao fazer amizade com sujeitos que, inteligentes e lúcidos como poucos, vivem insatisfeitos, questionam e se perdem, mas mesmo assim seguem na rota do melhor, sorriem sem armação e buscam. Até agora, pude entender pelo menos uma coisa: a alegria é de uma arquitetura verdadeira e fragilíssima, e requer esforço. Por isso, adquiri enorme respeito por quem ri de verdade.

Quando tenho, eu mesmo, inesperados momentos alegres, descubro que a alegria é de uma vulnerabilidade tremenda. A alegria é lúcida: ela sabe que qualquer contratempo ou notícia ruim a ameaçam. Mesmo a preocupação com esses riscos pode, por antecipação, acabar com ela. A alegria é ambiciosa: quer se perpetuar apesar de sua fragilidade. Por isso, se estou alegre, tenho o ímpeto de fugir de qualquer conflito para que nenhum tropeço me pegue de surpresa, para que a minha alegria não seja derrotada. Quero passar longe de qualquer grosseria, discórdia, tragédia, crise, traição. Mas fugir desses riscos não significa tentar correr de uma parte inescapável da realidade? Porque basta estar vivo para se expor aos riscos, e ninguém pode ser tão completamente independente e superprotegido a ponto de só viver o que lhe for prazeroso. Talvez seja este o grande desafio ao espírito alegre: se chocar contra a realidade, da qual não se tem controle, e ainda permanecer em vigor, sem deixar que o medo e as decepções impeçam todo riso.

Será que alguém consegue sustentar a alegria por muito tempo na vida comum? Pergunto isso porque percebo que mal nos distraímos e já começamos a reclamar de tudo, ignorando o que se fez e realizou, e essa postura de insatisfação é tão espontânea e convincente que, quando nos damos conta, já viramos as costas para a alegria e nos apegamos à falta do que não está ao nosso alcance, e nos sentimos ressentidos, fracassados, exaustos, desistentes – e nos sentimos donos da razão. Para piorar, o tal do "aproveite o dia!" continua sendo a ordem mais opressora, irritante, clichê – e verdadeira.

Mas a alegria não é uma questão de sorte. Justamente por ser frágil, ela pede o nosso comprometimento para se manter. O que não quer dizer que devamos nos obrigar ao riso. Não existe nada mais triste do que uma gargalhada sem vontade. É preciso, isto sim, certa acuidade no jeito de olhar o mundo para que o riso seja honesto e, se possível, frequente. Talvez seja necessário ter também a generosidade de aceitar as próprias insatisfações e derrotas de vez em quando, mesmo que elas tragam ondas de tristeza. Porque assim, com os músculos relaxados, assumidos e corajosos, o riso fica mais propício a acontecer.

Não acredito que a alegria precise se impor. À alegria basta que seja. Não tem que se explicar. Depende do que estimula o riso de cada um. A minha alegria, por exemplo, é mais pura quando vem da perplexidade com a beleza no mundo. Sem papo nem roteiro, o riso do espanto é o meu riso favorito. Ele funciona como um miniêxtase.

Por que tem gente que cobre o riso com as mãos, como se tivesse vergonha da própria alegria? O riso é um gesto para fora, um gesto sem pudor. Vem da lucidez de se desapegar das preocupações e colocar os dentes à mostra sem que isto signifique ameaça, e sim um prazer no instante e um convite a dividir este prazer.

E agora, que ando fascinado pela alegria e me convenço de sua possibilidade, meu desejo é ter sempre o encontro com o contentamento tranquilo, do tipo que não necessita de grandes novidades. Torço para que se propague no meu caminho gente com aquele riso calmo e firme que parece me dizer: este riso existe e você deve encontrar o seu. Esse é o riso que me convence antes que eu tenha tempo de me armar com morais, insatisfações e traumas – antes que eu tenha sobre ele qualquer desconfiança. O riso que me faz entender e respeitar.

Acho que existe hoje uma ressaca do discurso da felicidade obrigatória. Vomitamos cansados o bem-estar e o amor que nos enfiam via revistas, sites e lambe-lambes e nos esquecemos da alegria que trazemos por talento. Não adianta muito propagar ordens para o amor e a felicidade nos muros das cidades feito um militante da fofura: a alegria não é rasa, não pode ser imposta e nem precisa de campanha: ela vem da descoberta de si e do seu próprio ridículo. E isso é profundamente individual.

Mas os dias de tristeza e agonia estão sempre nos rondando. Vez ou outra batem à porta – quando não invadem a casa, atravessando paredes. Talvez eles cheguem até você numa festa, ou no próximo feriado em que você não viaje por preguiça ou falta de dinheiro. Será para os dias tristes que temos a capacidade de exercitar a paciência? Pode ser, mas isto também se acaba. O importante, suspeito, é não se prender em redemoinhos de agonia. Para deixar que os humores fluam e a alegria se sinta à vontade a dar as caras de novo o mais rápido possível. Cada instante é um desafio.

Thiago Barbalho é escritor. Publicou os livros "Thiago Barbalho vai para o fundo do poço" (Edith, 2011) e "Doritos" (Vira-Lata, 2013).
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DEIXAMOS DE SONHAR ACORDADOS?


A capa original do livro “24/7 - capitalismo tardio e os fins do sono” traz um recorte sobre a imagem de um edifício, sua fachada e suas janelas empilhadas. A repetição sugere uma padronagem, remete à muitas serialidades, nas formas de morar, no trabalho, na construção dos edifícios. As luzes do interior dos ambientes seriais do edifício estão acesas, indicam atividade adentrando a noite. O livro começa aí. A vontade avançar com a atividade produtiva para dentro da noite, de romper com a ausência de luz provocada pelo sol que se pôs anuncia, para Crary, o início da modernidade. Acompanhamos em seguida o desenvolvimento do ponto central do livro: a condição produtiva, contínua e incessante de todo o tempo útil do homem contemporâneo.

Não é esta a capa que reveste a edição brasileira, mas tampouco a alteração tira o mérito do instigante ensaio de Crary sobre as condições de vida e produção do mundo contemporâneo, e suas indicações para aspectos críticos de um futuro próximo.

Presenciamos cotidianamente um limite claro: deitamos sob o suspiro de uma última notícia no whatsapp, de uma última atualização no facebook, no instagram e demais redes sociais; acordamos e a olhos meio abertos verificamos as últimas notícias que porventura tenhamos perdido por fechar os olhos antes dos amigos, familiares, conhecidos. Não nos levantamos e já fornecemos dados sobre nós, a velocidade de nossa leitura, nossos horários, hábitos e preferências. O sono configura-se em primeira instância, em nosso espaço coletivo de liberdade: “é uma interrupção sem concessões no roubo de nosso tempo pelo capitalismo”, diz Crary.

Quatro capítulos destrincham o sono, o sonho e a noite entremeados às repercussão que sobre elas recaiu o capitalismo tardio. Já no primeiro capítulo, somos lembrados sobre como a modernidade proporcionou seguidas rupturas com os ciclos da natureza, e como o adormecer à noite e acordar pela manhã segue sendo um elo que mantemos com a pré-modernidade, nosso passado rural e também com nossa frágil condição de seres vivos, dependentes de condições mínimas para sobrevivência, dentre elas o repouso. “O sono é uma afirmação irracional e intolerável de que pode haver limites à compatibilidade de seres vivos com as forças supostamente irresistíveis da modernização”, diz Crary.

O termo 24/7 refere-se a uma expressão corriqueira da língua inglesa que significa “vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana”, ou seja, o tempo todo. Não foi escolhido por acaso. Crary expõe a barreira que o sono ainda oferece ao avanço do capitalismo tardio, por ser um estado de devaneio, quanto todo o tempo de espera e distração está sendo submetido a um controle (tecnológico); e de rompimento, quando “a realidade bastante diversa de nosso tempo se caracteriza pela manutenção calculada de um estado de transição contínuo”. Crary afirma que, se algum dia acreditamos que os avanços tecnológicos que presenciamos nos últimos anos se consolidariam, e a partir daí passaríamos por um momento de transição para um novo paradigma da era digital, hoje já podemos constatar que jamais haverá um momento em que “alcançaremos” tal estado, e que, como escreveu Marx, a “revolução contínua”, ou a “simulação contínua do novo” é intrínseca à manutenção do capitalismo.

Na cidade, espaço manifesto do cotidiano coletivo, o 24/7 vem junto à institucionalização e especialização dos espaços públicos, infiltrando-se nos momentos restantes de imprevisibilidade, nos lugares onde a espera é o tempo suspenso compartilhado por todos, mesmo na mais banal das filas. Sobre o filme D`Est (Do Leste) de Chantal Akerman, de 1992, Cracy comenta: “Mas uma de suas realizações mais reveladoras é também mostrar o ato de esperar como essencial para a experiência de estar junto, para a possibilidade incerta da comunidade. É um tempo no qual encontros podem acontecer. Misturada às contrariedades e frustrações está a dignidade humilde e trivial da espera, de ser paciente por respeito aos outros, pela aceitação tácita do tempo compartilhado por todos. O tempo suspenso, improdutivo da espera, de esperar nossa vez, é inseparável de qualquer forma de cooperação ou reciprocidade”.

Hoje a espera é um tempo preenchido, respondemos mensagens urgentes, ou não, atualizamo-nos sobre os últimos e-mails de trabalho, ou de lazer, passamos os olhos sobre as últimas imagens fascinantes do instagram, ou outras nem tão importantes assim. Deixamos de sonhar acordado? Deixaremos de sonhar acordado? No belíssimo filme Waking Life ouvimos: “Já é ruim o suficiente que você venda sua vida enquanto está acordado por um salário mínimo, mas agora eles conseguem seus sonhos de graça” (It´s bad enough that you sell your waking life for minimun wage, but now they get your dreams for free). Com a habilidade de conciliar a uma linguagem acessível e a situações cotidianas, conceitos complexos e ideias de autores diversos, de filósofos a cientistas, Crary nos convida a refletir sobre que condições nos colocamos conectados. Em quantos momentos de nossa vida nos damos ao luxo de ignorar o celular, as redes, as informações, as luzes artificiais das telas artificiais para observar o nosso mundo entorno? Quando podemos de fato sonhar acordados?


Luísa Augusta Gabriela Teixeira Gonçalves é Arquiteta, urbanista, estudante, pesquisadora.
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QUANDO VAI COMEÇAR A PUTARIA?


Em um desses dias de outono que só o Rio tem, céu azul e um frio absurdo para cariocas, uma das minhas melhores amigas resolveu fazer sua despedida de solteira. Do alto dos meus 29 anos, eu só participei de uma despedida de solteira. Que foi bem caída, num hostel boutique, com drinks caros, enquanto eu esperava ver gente pelada e muita sacanagem rolando solta.

Dessa vez, a noiva deixou a despedida a cargo de umas amigas, que eu não fazia ideia de quem eram. As meninas já estavam discutindo os detalhes há dois meses. Entrei no grupo do Whatsapp, que tinha uma média de 200 mensagens por dia, e vi que o sarrafo estava alto demais pra mim.

Eu estou desempregada e raspando o que resta das minhas economias, inclusive minha aposentadoria. Agradeci o convite e resolvi que não ia participar. Na véspera, uma amiga da amiga, que a gente pode chamar de Juliana, a amiga da amiga, não a minha amiga, me convidou e disse que ia rolar um esquenta G-R-Á-T-I-S e um pós, também grátis, numa casa de swing. Topei tudo. Meu esquema anda sendo festas grátis, ocupações, coquetéis com comida liberada.

No esquenta, estavam todas animadíssimas. Nunca vi tanta coisa em forma de piroca na minha vida. Tinha de todos os tipos, em todos os cantos. Dali, elas seguiram para um pagode e eu voltei para casa com dor no coração e saudade das novas amigas.

Juliana havia me garantindo que às 23h30 estariam lá. Quando me enviou o nome do lugar, dei um Google pra saber o que me esperava. Site com música e a promessa: a casa mais alternativa do Rio. Dark room, glory hole, cabines, swing, suruba, MULHER GRÁTIS. Olha, eu estou tentando ser feminista há um bom tempo, não curto isso de mulher ser grátis, pagar menos, mas na atual conjuntura dos fatos, nem consigo expressar a felicidade que eu senti.

Pra matar o tempo entre a pré e a pós, fui tomar uma cerveja com um amigo, que me convidou para um samba. Só que, samba no Rio de Janeiro é meio...nhe. Entre suruba e samba, preferi ir a suruba, por que o Rio pode ser o berço do samba, mas a suruba tem o Catra como rei. Pus uma calça e me taquei para a casa de swing, que fica a 1h30 da minha casa.

Encontrei todas as amigas já bêbadas na porta e alguns casais, que pareciam ser habitués do local (sorry, Amaury Junior), confirmei a entrada grátis e fui chegando. Um DJ tocava músicas de rádio e afirmou: a melhor boate do Brasil. No lugar, que é como qualquer outra balada que você já tenha ido, com a diferença de ter muitos mastros, há um espaço no térreo com várias cabines e janelas com treliça. Ainda aí, duas salas com a placa: dark room e uma com filmes pornôs de suruba. No andar de cima, quartos privativos e três salas com cortininha. Casais subiram para os quartos privativos, o que nos deixou super frustradas.

Nenhuma ação na boate. Na pista, uma moça de vestido preto dançava animadamente para o seu marido e os casais eram, em grande maioria, coroas. Pensei até o quanto seria engraçado se visse, sei lá, minha mãe. Me confortei com a ideia de que, pelo menos, ela iria transar e fiquei feliz por ela. Pedi uma caipirinha, depois de olhar o cardápio e pensar no custo benefício. Para minha alegria, o barman pôs tanta cachaça que aquele seria o único drink da noite. O lugar tem preço de puteiro, como diria meu avô.

Encostada no bar, uma moça comia uma porção de batatas fritas sozinha. Aliás, só serviam fritura. Não que eu esteja reclamando. Os casais não paravam de chegar, mas aquele clima de fim de festa, sem ação permanecia. Eu me consolava com a ideia da pista de dança e todas as meninas se jogando no pole dance. Resolvi espantar meu tédio e fingi que era um velho safado, olhando as bundinhas das cocotas. Confesso, não foi nada mal.

De repente, opa, grandes amigos de alguém estão aí. Opa, a executiva da multinacional que eu trabalho está aí. Mulheres que sobem no palco, ganham tequila. Desculpe, Simone de Beauvoir. Eu nem bebo tequila, subi por subir mesmo. Nesse tempo, um casal começa a olhar para mim e para Juliana, ela se empolga e derruba meu drink no casal. Porra, meu drink da noite. O casal fica aborrecido e eu acho engraçado como o tesão se evaporou.

QUANDO VAI COMEÇAR A PUTARIA? Me garantem que depois do strip-tease. Eis que chega uma mulher, mignon, com um hábito de freira. Caralho, eu adoro freiras. Não no sentido sexual, gosto da instituição freiras. Estudei em escola de freiras e até pensei em ser uma, já que a vida das Salesianas, a congregação das da minha escola, era bem liberal. Só não transavam, mas ninguém queria me comer na época da escola mesmo. A freira tira o hábito e é um diabo incógnito. As meninas do meu grupo acham que aquilo é pecado e fudeu no nosso dia do juízo final.

Ela dubla a música, sinto saudade dos episódios de RuPaul, dá chicotada em todas, sobe no pole, fica nua, peitinhos e bunda grande. O meu grupo aplaude, empolgadíssimo, pela lição aprendida com a madre superiora.

Chega o cara. Terno, gravata e casacão. Ele tira a roupa super rápido. Será que tá de pau duro? Tomou Viagra, certeza. Ele tá de pau duro há horas, são os palpites da mesa. Pau gigante, meia bomba, ele sai envergonhado.

Os strippers voltam juntos. Ele agarra a todas, me agarra e eu rio horrores. No final, me agradece. Agarra Juliana e ela faz uma performance maravilhosa. Leva jeito pra coisa, é o que todas falamos. No final da festa, ela me promete que volta, com ou sem namorado. Acaba o show e vários casais se direcionam às salinhas. Vai começar, amigos.

No centro do dark room, um casal manda ver e várias pessoas assistem. Fazem amorzinho gostoso. Quem são? Os strippers? O cara sai de cima da mulher e descobrimos que é o bofe da executiva e a executiva, chefe de uma das meninas, professora de outra. Eta, coisa maravilhosa.

É interessante como essa liberdade de sexo fez com que a gente se tornasse infantil. Todas toparam assistir, mas ríamos feito bobas pelos corredores das salas. Vai você, vai você primeiro. Fala mais baixo, pra não atrapalhar a foda das pessoas. Esse lugar cheira a sexo, diz uma das meninas. Penso que, se toda vez que eu for transar, tiver esse cheiro, nunca mais vou querer transar na vida.

Percorremos as cabines, em busca do voyeurismo. Na maioria delas, caras chupando mulheres e mãos bobas no glory hole. Um pau no glory hole e a mulher se ocupando dos dois. A ala mais conservadora do grupo está em choque. Principalmente, pelo casal de amigos de uma das meninas que mandou ver num boquete para todos verem. Como olhar para eles daqui para frente? A mulher do casal estava no banheiro, a amiga deles resolveu ir para casa com vontade de fazer xixi mesmo. Torço para que todas tragam os maridos ou que sentem na cara deles na volta para casa.

Já na saída, MC Ludmila cantava “não sou de uma pessoa só
Não curto amores, eu curto sabores da vida”.

Se você quiser, esta história acaba aqui. Se você quer conselhos de uma desconhecida, é o seguinte: tá a fim de conhecer? Vá lá e veja como é. Não precisa esperar tá namorando, ficar velho, ter previdência privada. Vá, principalmente, se você for mulher ou, como chamam nesses lugares, unicórnios. Você pode ir sozinha, com amigas, namorada e ninguém paga nada para entrar. A moral católica atrapalha um pouco e aparecer uma freira não ajuda em nada. Você é homem? Não, não pode ir sozinho. Arrume uma amiga e, se ela tiver desempregada, pode pagar a entrada dela. É um casal? Se joguem. Obrigada. De nada.


Joana Mendes é redatora publicitária.


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I NEVER CAN SAY GOODBYE


1. Todo o propósito daquele lugar era a piscina e ainda não era fim de festa quando alguém me interceptou pelo caminho até o banheiro e sugeriu “vamos?”. E fomos. Eu estava de calcinha, com a parte de cima de um biquíni e um cabelo que não me pertencia, porque era carnaval. Outros foliões se juntaram a nós, o marido de uma amiga fez comentários indiscretos sobre algumas bundas expostas e o pagode começou a tocar porque de repente o tempo passou e tudo já começava a acabar. Um coro de Raça Negra despontou com o sol, negociamos toalhas com os donos do local quando os dedos enrugaram e no meio do caminho para um café da manhã coletivo percebi que estava cansada demais até para um milk-shake. Desovei pessoas pelo Jardim Botânico dificultando a volta deles para casa e dormi com cheiro de cloro. A fantasia não pedia rímel, graças, porque isso sim seria uma ressaca das brabas, ter que lavar fronhas, toalhas e o que mais ficasse manchado pelas marcas desse cosmético que só serve para borrar as coisas.

2. Era Reveillon e parecíamos uma banda em fim de turnê, esparramados pela sala admirando uma vista da qual morremos de saudades. Foi pouco antes do êxodo que espalhou aquele grupo pelo mundo, e foi quando, minutos antes de declararmos o fim definitivo daquela noite, alguém que seria o guitarrista alucinado daquela trupe acariciou as costas de M. numa tentativa errada de afagar B., porque já não havia possibilidade de enxergar as pessoas ou o gênero certo. Para a derradeira despedida, o mesmo pseudo-guitarrista encheu os bolsos dos últimos bombons que habitavam o pote à sua frente, num gesto que pareceu ensaiado em câmera lenta justamente numa pausa das gargalhadas já meio roucas. Saiu cambaleando se acabando no cordão, alguém se aninhou numa poltrona e de repente jarras e mais jarras de água surgiram como num milagre ressuscitador de todos nós que, já sem a aura do palco, àquela altura parecíamos zumbis vestidos de branco, o sol brilhando no céu e algo de Buñuel no ar, ninguém mais conseguia ir embora.

3. C. só voltaria pra casa depois que o metrô reabrisse, J. na varanda não dava pra saber se era flerte ou aquela droga que parece não sair de moda ("Não era amor era cilada", cantavam aqueles rapazes nos anos 1990) e no sofá, desconjuntada, Amy Winehouse quase não cabia. Tirei as meias e as botas depois que enfiei a última dupla de sobreviventes no elevador e inundei de água e sabão o chão da cozinha. Meu look de Walter White no primeiro episódio de Breaking Bad continuava mais ou menos digno, embora tatuagens temporárias ocupassem parte do meu rosto e das pernas. Era fevereiro, a faxina pode ser refrescante e por via das dúvidas deixei um balde ao alcance de Amy.

4. Num tempo em que boa parte de nós ia e vinha pelos ares, bolsas-sanduíche e fugas – e portanto já não sei dizer se era chegada ou partida de alguém – nos reunimos na cobertura do pai de R., que além de ser ponto de encontro parecia uma galeria de arte contemporânea onde o gato Aderbal escalava um quadro do Kracjberg. Usávamos casacos e improvisamos uma quadrilha na sala, até que alguém teve a brilhante ideia de mostrar para as convidadas vindas de Singapura como é que se faz. Foi assim que fomos parar dentro de uma enorme jacuzzi sem água que ficava na varanda do terraço, dançando animados as últimas músicas daquele ipod com volume tão baixo, embora pouco importasse.

5. Saíamos daquela boate esquizofrênica que conjugava dançarinos vintage de passinho e strip-tease quando ela me obrigou a parar na praia. A gente morava numa vizinhaça distante e mal vista, e essa foi só uma das razões porque ficamos inseparáveis. Até a boate, onde meu coração foi estraçalhado por aquele sujeito que ficou aos beijos com outra, sofrêramos um assalto em Botafogo. Não exatamente: arrombaram o carro enquanto bebíamos no bar e levaram, além dos cds num ridículo case de abelha, o figurino do curta de um amigo. Outras coisas se rasgaram naquela noite, como o vestido de C. e as costuras do jeans de F. ("Everybody was kung fu fighting", parece). Ela me obrigou a entrar no mar num frio de julho, o carro destrancado e meio torto numa vaga, e fui inteligente o suficiente pra tirar a calça de veludo. Quando voltamos para o Fiat que alagava em qualquer chuva ela apertou play na trilha sonora de Grease, percebi que faltava um sapato, deixamos um terceiro elemento em Ipanema e cantamos os pulmões até cair na cama do outro lado do túnel.

6. O mundo era feito de vodka tônica, de celulares Nokia, de noites intermináveis no 00, mas que eventualmente terminavam com pão de queijo numa casa no Joá. Era o aniversário de B. e ela ficou maluca a ponto de fazer todo mundo beijar o Capitão Haddock, seu então chaveiro. Talvez eu tenha sido meio insensível, mas o caso é que voltei pra casa mais cedo dirigindo o carro dela, que permaneceu na festa com o resto do grupo. O mundo era feito de Orkut também, e daquela tática de deixar mensagens ocultas por meio de um testimonial que jamais seria aceito, e porque ela tinha esquecido o celular no carro achei que aquela seria a forma mais imediata de comunicação: expliquei tudo e deixei o número do meu telefone, que começou a tocar loucamente às 9 da manhã. O dia seguinte foi como Cara cadê meu carro, não que tivéssemos assistido o filme. Era o auge da minha hérnia de disco e da coreografia de “Praise you”, que ela executava com a desenvoltura de alguém que não tinha nenhuma vértebra afetada. Eu acabava sempre aceitando o convite dela para almoçar, e ia dopada de Tylenol e anti-inflamatório encher a cara de suco de tangerina no Gula Gula mais próximo.

7. É sempre perto de 4 da manhã quando baixa uma nazicleaner e, desde que me tornei a dj oficial da festa de um ou dois amigos, me divido entre o som e a arrumação da casa. Mas não me contento em fazer isso sozinha, acabo convocando gente que não tem nada a ver com a história. Era perto de 6 quando alguém declarou que nunca havia testemunhado um fim de festa com tanta gente prestativa e vestida e a gente riu. A playlist intitulada “restos” vinha bem a calhar: “Is this love, is this love, is this love, is this love that I’m feeling”, cantava o Bob Marley, numa música que passei a valorizar de uns anos para cá, desde que comecei a concordar que simpatia é, de fato, quase amor. Assim como massagem, cafuné e as 3 ou 4 mensagens que você envia no dia seguinte ainda meio bêbada nessa idade em que a ressaca só chega 2 dias depois, porque é cada vez mais complicado se livrar do álcool, do rímel e de gente linda que – contrariando as matinês pré-adolescentes em que você se via agarrada a uma vassoura –, com um pouco de sorte e um setlist invejável, te tira pra dançar a clássica do Lenny Kravitz para esses desfechos em que os sapatos estão chutados para debaixo de alguma cadeira: “Here we are still together”, etc.

8. Estabelecemos a tradição do hambúrguer de domingo, porque sempre é domingo, onde fazemos uma espécie de reconstituição dos fatos (nosso very own CSI), de lembranças desencontradas e retalhos que quando juntos dão outra dimensão a essas noites memoráveis e manhãs gloriosas cheias de buracos, joanetes doloridos e hematomas que ninguém sabe de onde surgiram. Quando acho que já computamos todos os danos da festa – das pinimbas com a vizinha debaixo até o vinho no notebook – M. ri divertida entre juras de sobriedade eterna e baldes de café com a certeza de que os estragos ainda nem começaram, tudo por causa dessa mania que a gente tem de se apaixonar temporariamente no meio da pista de dança. É quase como se algumas coisas só começassem depois que terminam.

9. Isso sem falar de todas aquelas cenas constrangedoras em que alguém segura os cabelos de outra pessoa pra ela vomitar sem tantos percalços – seja no banheiro da sua casa enquanto você se pergunta por que a sua amiga resolveu fazer isso na pia, e não no vaso, seja no meio da Rua Lopes Quintas enquanto seu amigo erudito também impede que você caia dentro de um canteiro de plantas
– e que fazem parecer que todo fim de festa é um misto de autodestruição e filme de terror com pedaços de gente despencando.

10. E fora toda a bolinha de queijo do Jobi, aquele mar de gordura quando já ninguém mais se entende e, no meio de uma tentativa de fazer as pazes, sem querer ele arranca lantejoulas do meu vestido, porque, parece, nem todos os avisos irão evitar o Carnaval, os abraços meio selvagens, os domingos, a bagaceira e o demaquilante que te catapulta pra emergência médica mais próxima.

11. Mas bagaceira mesmo foi chegar na casa de M. muito sóbrios numa noite de verão em que o dj tinha um plano maligno para arruinar a festa. Onde já se viu não tocar Caetano ou Michael Jackson, e ali naquela pista as pessoas pareciam viver num país onde as existências de Madonna e Beyoncé ainda não haviam sido noticiadas. Não nos ocorreu beber para esquecer ou tentar salvar alguma coisa, em vez disso pulamos num taxi, deitamos no chão, porque o apartamento quase não tinha móveis ainda, e amaldiçoamos aquela gente desprovida de endorfina até as futuras gerações.

12. Por fim, também, tem aquele último parágrafo do apanhador do Salinger: “It’s funny. Don’t ever tell anybody anyhting. If you do, you start missing everybody."


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JULIA WAHMANN
Editora de literatura e colunista do ORNITORRINCO

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EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO


Proust pensando no que ia fazer num sábado à noite qualquer.


















Abro os olhos e ainda está escuro. Minha janela tem um blackout que deixa o quarto um breu.  São 13:30 da tarde, um domingo. Fiquei revirando na cama, mergulhando no cheiro delicioso da pele e do cabelo da minha namorada. Quando decidi me levantar: 13:30.

Saí da cama meio mal, com um sentimento como que arrependido de alguma coisa.  Parecia que tinha alguma questão fundamentalmente errada em acordar tarde. A sensação foi: Perdi o dia, perdi tempo, tenho que fazer alguma coisa hoje, tenho que aproveitar o resto do dia, em busca de um tempo perdido... Achando que iría encontra-lo.

Vivemos uma epidemia do fazer. É quase impossível você só existir por algumas horas do seu dia. Tudo que a gente "tem que" é com hora marcada para fazer. E as horas não páram, o tempo não pára, time is money é o que dizem né? Em uma época em que tempo é dinheiro não é a toa que ninguém quer "perder" tempo com coisas "bobas", corriqueiras e que não geram rendimentos,  como uma caminhada lenta observando qualquer paisagem, ver um por do sol, tomar um banho tranquilo ou como dormir sem hora pra acordar com sua namorada. Tempo pode até ser dinheiro na visão de alguns, mas um fato acima de pontos de vista: dinheiro jamais será tempo.

Dinheiro. Muitas vezes nem percebemos, mas o Capitalismo nos injeta sutil, ou abertamente, a obrigação desse tanto fazer com hora marcada.  Esta obrigação fica tão impregnada que tive uma semana de mini-férias, fui pra Petrópolis, um frio opressor me obrigou a ficar em casa e eu fiquei meio ansioso: não sabia o que fazer com o fato de não ter hora nem obrigação de fazer qualquer coisa. A gente diz "matar o tempo" em várias línguas, já parou pra refletir como essa expressão é ruim?  

Ainda nessa semana Serra, meu sobrinho de 10 anos e um amigo reclamavam constantemente que não tinham coisas pra matar o tempo: "Não tem nada pra fazer, Titi!" Sinto que a geração deles perdeu ainda mais a capacidade de só existir, criar, brincar ou inventar, usam de forma deturpada as milhões de opções tecnológicas á disposição deles, estão ainda mais impregnadas com a obrigação de "fazer coisas" o tempo todo. Parece que essa tecnologia, que poderia ser aliada, acaba sendo transformada numa babaca na nossa vida.


Por exemplo: A velocidade e variedade das nossas formas de se comunicar se acelerou, mas geralmente, ao invés de facilitar nossa comunicação esse excesso de possibilidades criou não só uma urgência de respostas de emails, mensagens de whatsapp, redes sociais, mas também ansiedades relacionadas. Você quase não tem mais o direito de receber uma mensagem de whatsapp e responder no seu tempo sem ser cobrado. Ter acesso a várias formas de se comunicar não deveria ser equivalente a esta quase obrigatoriedade de estar sempre disponível e afim de se comunicar com velocidade, mas é.

Outro exemplo são os meios de transporte. Hoje, viajamos do Rio pra Petrópolis em uma hora, antigamente levava um dia ou mais. Tecnicamente esse aumento na velocidade, sería pra podermos ter mais tempo, porque, sim, a tecnologia de várias formas suprime as distâncias, então deveríamos ter mais tempo, viver mais e melhor, só que vivemos apenas mais depressa, mais ansiosos e com mais pressa. As máquinas foram feitas pra poupar nosso tempo, e poupam, mas a gente tem que gastar esse mesmo tempo pra produzir mais, fazer alguma coisa e de preferência fazer mais rápido.mas daí viajamos em um ritmo frenético, tenso, em alta velocidade (e olha que eu não ando muito acima de 100km/h em geral) e apesar disso parece que temos menos tempo. A vida acaba virando essas viagens de hoje: uma estrada de alta velocidade em que tudo parece que flui mais rápido, mas o custo é uma paisagem cheia de detalhes ricos que passa despercebida.

Ainda no frio de Petrópolis fiquei sem fazer várias coisas, como por exemplo: tomar banho. A ironia é que eu não estava fedendo, nem sujo. Mas por causa dessa vidacronometradatimeismoney, tomar banho foi se transformando numa lavagem automática com hora marcada, ao invés de um ritual delicioso de limpeza do nosso dia. Assim, não senti falta de tomar banho justo porque estava perdendo o prazer, sem tempo para tomar um banho com toda a calma. No fim do segundo dia de porqueira lembrei de tomar banho. Usei o Rexona do meu cunhado e tive algumas epifanias.

Rexona é barril dobrado, como se diz lindamente na Bahia. Fede, deixa uma pizza amarela dura no suvaco das camisas, é caro, dá câncer e nos estimula a usar errado nosso tempo. Rexona lançou uma campanha com um slogan que se usa muito entre os publicitários: Faça mais. Considero uma das propagandas mais idiotas dos últimos tempos. Além de mini-cenas bem ridículas e clichéziadas, reforça uma tendência burra do nosso sistema : fazer mais. Fazer mais?! Perá lá. Com essa vida modernosa cheia de tecnologia não seria melhor a gente fazer menos e em menos tempo? Não venham me dizer pra fazer mais, publicitários de Rexona. 

Ninguém dessas fotos usa Rexona, é nítido pelos sorrisos.

Um outro fator pra essa vida modernética de fazer mais é que a semana é muito mal dividida. Se você não for político trabalha cinco ou seis dias e tem um de folga. Certo seria quatro dias de descanso no mínimo. As pessoas riem quando eu falo isso, como se fosse algum absurdo o que eu digo, quando o real absurdo é a forma que a gente se acostumou a achar normal.  6 para 1. Tá certo isso? No mínimo tinha que ser 4 de trabalho e 3 de folga. Pra todas as profissões do mundo, no mundo todo. Colapso da economia ? Falta de comida? Falta de produtos? Será? Insisto que a gente anda produzindo, comprando e comendo demais.

Essa nossa ilusão de normalidade, vem de um raciocínio lógico sem muita lógica: Oito horas de trabalho, oito horas dormindo, oito para a nossa vida pessoal. Parece equilibrado. Dormimos oito horas, metade das horas acordadas para o trabalho e, com o dinheiro que recebemos, fazemos o que quisermos da nossa vida. Só que não acontece bem assim, né?

Pra começar, o tempo em que estamos nos organizando para trabalhar (isso contando que você não é um dos milhares que demoram 3, 4 horas só no trajeto de ida e volta ao trabalho, fato comum em São Paulo) e o tempo em que estamos desopilando de ter trabalhado tem que ser subtraído das nossas horas de lazer. Então sobra bem pouco, e o pouco que sobra também já está bem comprometido e decido como será usado por você, só que é tão maquiado e naturalizado que muitas vezes a gente nem se dá conta.

Quando não estamos produzindo nessas nossas míseras horas de lazer, tem toda uma indústria produzindo, criando em nós a necessidade de não parar, de nos entreter, consumir e fazer mais. Fazer com que as pessoas tenham menos tempo livre é uma armadilha muita ardilosa: ainda mais em cidades como São Paulo, nos parece merecido, necessário e natural pagar mais por conveniência, prazer, objetos de consumo e qualquer outro alívio que o dinheiro possa comprar. E como conseguimos mais dinheiro? Vendendo mais nosso tempo. Pronto, caiu na armadilha. 

Apesar do que possa parecer, este não é um texto anti-Capitalismo. O Capitalismo não cria necessidades na cabeça de ninguém. Nós criamos, nós é que depois de uma semana de trabalho, de vender nosso tempo e não parar, sentimos e de alguma forma alimentamos essa quase obrigação de ter que fazer alguma coisa no nosso dia de folga. Ficar em casa sem  fazer nada? Jamais. Quantas vezes você já se perguntou ansiosamente no seu dia de descanso: o que eu vou fazer hoje? O que tem pra fazer hoje? Somos seres humano, mas tem sido bem difícil só ser, sempre temos que fazer, fazer e fazer.

Se é pra fazer alguma coisa sugiro que façamos o seguinte: O dia passa a ter 12 horas só, cada 2 horas antigas equivale a uma, assim tudo ficaria mais lento. Duas pessoas de cem anos me disseram a mesma coisa sobre sua longevidade saudável: um dos segredos é fazer menos e com mais calma. Não sou a favor da longevidade a qualquer custo, mas sou a favor de qualidade de vida e de usarmos melhor nosso tempo.

Esse tempo veloz moderno é uma prisão sem parede e já estamos condicionados a nos aprisionar: acordamos, pegamos e acompanhamos algum marcador de tempo. Mesmo quando não temos hora pra nada quantas vezes ficamos olhando as horas, marcando o tempo? Percebo que uma das principais razões de não fazermos as coisas com mais calma é termos um (ou mais) relógios ou marcadores de tempo pra nos enclausurar voluntariamente em toda essa engrenagem. Porque quando nos dão um relógio, nos dão a prisão de medir o tempo e estar on time, full timeO relógio não é o presente, você que é oferecido como presente de aniversário pros relógios, estes pequeños infiernos floridos, como disse Cortazar.

Para um relógio os dias talvez sejam iguais, mas não para um ser humano. Até onde eu sei, eu, você e Proust somos seres humanos. Proust, o mesmo que escreveu "À la recherche du temps perdu" o mesmo título desse texto, uma bíblia de 3 mil páginas que ironicamente aborda a relação do homem com o tempo e com a memória. 


Estudiosos de Proust, que como eu perderam muito tempo lendo esse livro, falam "que faltam séculos de exegese para que se compreenda o significado maior da obra Proustiana - para que se vá além do tempo perdido na leitura de tantas páginas." Baboseira. Não perca seu tempo lendo o meu texto, muito menos lendo Proust. Já é tarde demais. Você está atrasado pra voltar a viver, fazer e fazer e fazer, hora de contar e vender seu tempo. Mas se ler e se arrepender, não procure pelo tempo perdido, você não vai encontrar.


franco.pngFRANCO FANTI
Roteirista, dramaturgo, ator e colunista do ORNITORRINCO


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DIÁRIO DO FILME 'HOMEM LIVRE' - PARTE III




Da arte do desapego ou Um filme é de todos assim como de cada um

A coisa mais curiosa pra um roteirista (tá, não sei se é A mais, mas é bem curiosa) é ver como as outras pessoas se apropriam do que você escreveu. Na própria escrita do roteiro, a gente tenta direcionar muitas coisas que não são exatamente trama ou diálogos, mas orbitam em torno da história e exercem influência no enredo e nos personagens.

As descrições no roteiro podem dizer como é o cenário, o figurino e o jeito de falar dos personagens. Podem também induzir o diretor a decupar a cena de determinada maneira.

Mas tudo isso fica no campo da possibilidade. Na prática, cada artista em seu departamento vai apropriar-se do texto segundo sua ótica, que, às vezes, pode diferir muito do que pensou o roteirista. Muitas vezes pra melhor, e o roteirista não pode ser vaidoso a ponto de evitar enxergar essas ocasiões.

Além do mais, as descrições no roteiro nunca são totalmente detalhadas, todo mundo tem que pensar em muitas outras coisas além do que está escrito. Ainda bem, porque seria um saco ler um roteiro que descrevesse minuciosamente as manchas na parede, o desgaste dos móveis e o carpete do chão. Um simples “um quarto precário” já dá conta da idéia e dá margem para a direção de arte e a cenografia criarem a partir do roteiro.

Filmagem no quarto do personagem Hélio.
No filme Homem Livre, por exemplo, há um ambiente muito importante que é o quarto do protagonista Hélio Lotte. Nesse quarto, a descrição do roteiro trazia adjetivos indicando que não era usado há muito tempo, e mencionava os objetos com os quais o personagem tem alguma interação. Microondas, televisão, armário. Isso tudo estava no roteiro., sem maiores especificações.

A direção de arte pegou essas poucas informações essenciais e entregou muito mais. A parede verde com tinta manchada e descascando me diz muito sobre a história daquele quarto nos últimos anos e seu estado de abandono. Enquanto a cama feita e os móveis organizados indicam que, ainda que ultimamente em desuso, aquele quarto fora preparado por alguém pra receber Hélio Lotte.

Hélio em seu quarto.



A direção de arte expandiu o que o roteiro já propunha (aliás, vale registrar, a direção de arte é de Patrícia Ramos, assistida por Sílvia Rumen).

Também me deparei com situações de mudanças mais radicais em relação ao roteiro, como, por exemplo, no momento de escalar o ator para o personagem Miranda. Ao escrever o roteiro eu tinha pensado em alguém com cerca de 60 anos que fizesse um tipo bicheiro suburbano carioca. A primeira mudança grande foi a escolha (feita por Alvaro, diretor, e Felipe Vidal, produtor de elenco) de Márcio Vito pro papel. Uns 20 anos mais novo do que o esboçado no roteiro.

Só que, nesse caso, já de início me empolguei com a mudança. Além de acha-lo um tremendo ator, ele tem feições marcantes que jogavam um desenho diferente ao personagem – e bem menos previsível do que o que eu havia imaginado antes. Essa impressão só fez melhorar quando vi os primeiros ensaios, com Márcio Vito tomando outro caminho de performance, passando longe do tipo bicheiro (que, mea culpa, estaria muito mais perto do clichê). Márcio foi por um caminho muito mais interessante pra chegar exatamente no cerne que eu queria do personagem: enigmático, ambíguo.

O elenco como um todo, na verdade, dá uma cara muito particular a cada personagem e, às vezes, é só uma questão de se acostumar. Eu não escrevo (pelo menos não nesse caso) com atores na cabeça, mas é inevitável você “interpretar” todos os papéis enquanto escreve. Eu não elaboro muito feições, mas penso numa cadência de fala, num ritmo, em trejeitos. Que, provavelmente, são inspirados em alguém, mas que eu não paro pra, conscientemente, registrar a influência.

Assim, quando me deparo com a “vida real”, isto é, o filme sendo rodado, preciso me desligar de todos aqueles estilos de interpretação que povoaram minha cabeça (a não ser que seja algo específico e relevante ao personagem, mas, se for, estará detalhado na rubrica). Em Homem Livre, por exemplo, eu imaginei um Hélio Lotte muito parecido com o que Armando Babaioff está fazendo. Tenso, desconfiado. Já a personagem Jamily veio uma malícia velada sob a aura de inocência, característica trazida pela atriz Thuany Andrade e encampada pela direção, que eu não tinha tão claro na mente, mas que deixou a personagem mais relevante na troca com Hélio.

Hélio e Jamily

O roteirista é um desapegado, mesmo que na marra. Neste caso eu estou muito à vontade por estar muito próximo da direção e confiar muito na equipe que está trabalhando. Sei que, se quiser ter uma carreira prolífica, muitas vezes o desapego será total depois da entrega do tratamento final, e certamente irei me deparar com decisões de outras áreas da produção que me desapontem.

Frequentei o set na semana inicial de filmagens. Primeiro, para ter certeza que é verdade e que o filme, enfim, está sendo rodado. Ansiedade e curiosidade de marinheiro de primeira viagem. Segundo, pela satisfação que é ver algo que só existia no papel (e na sua cabeça) ganhando cores, texturas, vozes, rostos, vida, nas mãos de gente talentosa e dedicada que se inspirou e se entusiasmou com algo que você escreveu.

Cinema é arte de expressão coletiva. Acho que essa foi a lição mais importante que aprendi na faculdade.


Pedro Perazzo é roteirista e colaborador do ORNITORRINCO.

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