Aquele toque fez desmoronar um muro fajuto, construído ao longo de quase trinta anos de pura inexperiência.
De dentro do ônibus, eu a vi ajeitar o lenço que cobria seus cabelos e quase todo o rosto. Muito bonito, por sinal. Desconhecia essa independência que a beleza pratica no Oriente Médio. Tomei nota: beleza e relatividade de mãos dadas a partir de agora.
De onde eu estava uma pequena porção de bochechas e testa ficaram à mostra. O seu carro ao lado do meu ônibus no semáforo. Ela não se viu observada ou fez cena para os olhos de um stalker ocidental e acidental. Ela subiu o espelho do quebra-sol, pegou a mão direita do marido e a colocou gentilmente sobre a perna. Ela o tocou. Fez carinho. Intencionalmente. Apenas eu, e minha até então fraca percepção do mundo, furtamos esse momento alheio.
Foi ali que percebi: uma viagem destrói o que você tem de pior para dar lugar à uma semente que cresce a cada novo carimbo no passaporte. Ou bilhete de ônibus. Cartão de embarque. Pedalada. Qualquer mudança mínima das suas coordenadas originais.
Se eu romantizei uma cena banal? É bem possível. No entanto, o romance, pra mim, não era uma opção ali naquelas coordenadas que passariam longe de qualquer roteiro turístico dos meus sonhos, não fosse a bolsa para viajar e participar de uma semana de workshops em Doha, no Qatar.
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Uma viagem destrói o que você tem de pior para dar
lugar à uma semente que cresce a cada novo carimbo
no passaporte. Ou bilhete de ônibus. Cartão de em-
barque. Pedalada. Qualquer mudança mínima das
suas coordenadas originais.
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E o sexismo? A repressão? Tudo aquilo de ruim que pregam por aquelas bandas de lá? Estão lá, como estão aqui também. Camuflados nos mais diferentes cantos. Não quero negá-los ou discuti-los com óculos de Pollyanna.
Agora o assunto não é político. Não é falar do que está fora. É o dentro. De mim. E de você também. Viajar para dentro da gente mesmo só é possível com a permissão do acaso. Acredito que isso possa, um dia, mudar o fora. O todo.
Passei, intencionalmente, a treinar meu olhar para dentro. Um gesto de afeto sincero para comigo mesmo. Ninguém, além de uma versão desatualizada de mim, para me observar e deixar cultivar um novo. Porque você bem deve saber, a vida no deserto não é fácil. A não ser que alguém lhe oferte sementes como aquela afetuosa mulher de lenço do carro ao lado.