O RELÓGIO DIGITAL DOS INGLESES


Todo dia 31 de dezembro as pessoas se munem de promessas e falsas esperanças. E não, não sou cruel. O desejo por uma nova vida surge na proporção inversa da real disposição para mudar. Você quer coisas novas, mas não quer esforço. Quer ser feliz e ganhar dinheiro no trabalho, mas não quer pressões, responsabilidades e horas longe de casa. Quer encontrar aquele que vai falar com seu baço e todas as terminações nervosas, mas não quer dar espaço, tempo, e muito menos carinho de verdade. Afinal, para que se expor?

Uma pesquisa realizada em Londres mostra que 1 em cada 7 britânicos não sabe ver as horas em relógios analógicos. É um tal de digital pra lá, outro para cá que chega a assombrar os mais lentos como eu. E vamos nessa. Vamos? Parece que sim, vamos no ritmo digital das relações, dos torpedos, do facetime, dos e-mails, do skype. Vamos na agilidade porque ninguém tem tempo a perder. Não foi agora? “Ó próximo, por favor”. A fila anda. Acho que estamos todos muito ingleses, e isso não é nada bom.

Tenho 34 anos e até hoje busco o meu lugar no mundo – agora, digital. Gosto dos filmes antigos da Audrey. Gosto de cartões postais. Ok, gosto de mandar torpedos e não gosto de telefone. Mas eu gosto principalmente do ao vivo e em cores vivas. Do olho no olho. Da mesa com os amigos. De dizer que todo dia é domingo e que rende uma boa prosa. E do tempo a correr de vista. Gosto do tempo fazendo o seu caminho no relógio analógico. Do ponteiro preenchendo o espaço e começando logo tudo aquilo de novo outra vez.

Apesar das promessas de sentir diferente, eu não as cumpro. É por isso que em uma quarta-feira à tarde... Serendipidade: Os olhos azuis/verdes/cinzas, o labrador - ops, a Aretha, as mãos, a roupa amarrotada, o cheiro, o violão, o sorriso, as poesias, a bunda, a falta de habilidade para massagens, o bom português, as cócegas, o pensamento fora da caixa, o suco de caju com uva, o sotaque, a criação do nosso alfabeto amoroso com os signos linguísticos.

Porque o digital serendipiando pode ser bem bom (@) (~).


Vanessa Aragão é jornalista e especialista em Literatura Brasileira pela PUC-Rio.