Na maior parte das vezes em que a Arte se voltou para os jogos, fomos contemplados com obras raríssimas que logo se tornaram clássicos no gênero a que pertencem, posso citar na literatura o romance O jogador (Igrok), de Dostoievski, ou os poemas de Jorge Luís Borges a respeito do jogo de xadrez, nas artes plásticas, o quadro Friend in Need, da série Dogs Playing Poker, criada por Cassius Coolidge, além dos quadros que fazem referência ao xadrez, de Duchamp, que foi enxadrista, e dos bons, nos dá a dimensão de como os jogos em geral podem ser uma boa lente de observação para que os artistas reflitam sobre determinados comportamentos presentes na vida do ser humano. Mas, e se o contrário acontecesse e os jogos se voltassem para a arte?
A apropriação da arte como a conhecemos não seria possível, ou seria muito difícil de se realizar, se pensarmos em jogos de cartas ou de tabuleiros com peças móveis, mas, trazendo esta questão para os dias atuais, fica bem mais fácil respondê-la, uma vez que temos os videogames, uma mídia visual que prova a cada dia que passa sua importância não só econômica mas também social e ao mesmo tempo em que rompe as suas próprias barreiras, quero dizer, à medida em que as plataformas se superam tecnologicamente e alcançam novos patamares gráficos, sonoros e sensoriais, um mundo enorme de possibilidades se abre, nesse sentido, os videogames, que nasceram com a proposta de trazer entretenimento e lazer sobretudo para as crianças, extrapolam seu papel logo no seu nascimento, tornando-se também o passatempo de muitos adultos, proporcionando encontros entre amigos, sendo alvo de debates e competições, ou seja, modificando a rotina e a forma de viver de milhares de seres humanos, tudo isso, sob um certo ponto de vista, pode parecer nocivo, culturalmente falando, durante muito tempo os videogames foram tomados como uma forma de alienação de consumo, e em boa parte não deixa de ser, mas essa alienação está presente em todos os campos de que nos propusermos a falar, na literatura, no cinema, nas artes plásticas, na música, o que ocorre é que os videogames vêm fazendo ao longo dos anos o caminho inverso, e aí está uma coisa fabulosa, a possibilidade de os videogames serem também avaliados e reconhecidos como expressões artísticas legítimas, que nada deixam a desejar seja em questões estéticas ou em questões sociológicas.
Ao longo da jovem história dos videogames sempre houve a ovelha negra, a ideia que se distinguia das demais, que "não era só um jogo", e essa expressão eu descarto porque todo videogame é um jogo, independentemente de sua concepção artística ou meramente lúdica, mas, como eu dizia, sempre houve a pulga atrás da orelha dos criadores que sussurrava "você pode fazer diferente, você pode provocar o jogador". Ora, a quem compete se colocar numa posição de diferença em relação à realidade e a provocar seu interlocutor senão à arte? Desse modo surgiram videogames que fugiam completamente à lógica do mercado e que nem por isso deixaram de marcar sua geração, é o caso de EVO (Evolution), jogo lançado em 1992 para o Super Nintendo, que busca contar a história da evolução das espécies de um ponto de vista nada corriqueiro.
Se o mais óbvio é pensar a evolução fazendo um movimento de ida ao passado, observando tudo como um ser já evoluído, EVO coloca o jogador em sua origem, e propõe que todo o caminho seja refeito. Era uma ideia extraordinária para a época, totalmente fora de qualquer padrão, tanto que foi reaproveitada pelo designer Will Wright para a criação de Spore, lançado em 2008, quando os computadores já davam conta de abraçar melhor a proposta tão pioneira de EVO. Contudo, Spore já não carrega a mesma essência, e não se diferencia muito dos videogames tradicionais que visam a passagem das horas. Mas outros viriam para manter e sustentar aquele viés, e mais originais, mais surpreendentes, mais engajados em tomar para si não apenas o papel de instrumento lúdico mas também humanístico, colocando o jogador diante de questões sociais complexas e sugerindo reflexões sobre as questões apresentadas.
Eis que surge então o aclamado Journey, lançado em 2012, e que propõe algo tão original que o alçou automaticamente aos braços do público e da crítica especializada, chamando a atenção até mesmo de quem não tem o hábito de jogar videogames, o jogo apostou seriamente na ideia de que podia comover o jogador, provocar nele sensações emotivas que um videogame tradicional, de corrida, luta ou tiroteio jamais poderiam, para isso os criadores de Journey foram buscar referências nas artes plásticas e na música, recrutando artistas "de verdade" para participar da produção do jogo (a trilha sonora de Jouney concorreu ao Grammy!).
Outro fator que o diferencia é o tempo de jogatina (gameplay) que Journey proporciona, algo em torno de 3-5 horas, enquanto os seus primos duram em média 30-40 horas, às vezes 100 e às vezes nunca terminam. Alguns apontaram essa curta duração como um ponto negativo, mas logo entenderam onde o diretor criativo Jenova Chen quis chegar, para ele Jouney devia ser mais como uma ida ao cinema, ao teatro ou coisa parecida, do que um simples jogo que você passa horas e horas jogando sem que algo mude na sua forma de enxergar as coisas.
Outro videogame, na minha opinião, determinante nesse ponto, é o modesto e ao mesmo tempo maravilhoso To the Moon, desenhado num motor gráfico (engine) que não custa mais de 100 dólares americanos e produzido por uma equipe que não ocupa uma página numa lista de nomes, o videogame, lançado para Windows em 2011, recebeu notas 9 e 8 em revistas de respeito como a Eurogamer e a Gamespot, respectivamente.
To the Moon foi dirigido pelo designer e compositor canadense Kan Gao, o enredo é um dos mais complexos dentro da história dos videogames, sem exageros. Odeio spoilers, mas não posso me conter, preciso dizer que uma personagem do jogo sofre da síndrome de Asperger, que o game faz referência ao Dr. Tony Attwood, um dos maiores especialistas no assunto desde que a doença foi descoberta recentemente. Só isso é o suficiente para olhar To the Moon por um outro ângulo, não há guerras, lutas nem explosões, nada do tipo, são apenas relações humanas, só isso, e a vontade de provocar no jogador o que a tragédia grega provocava em seu público quando apresentada nos grandes teatros abertos da antiguidade. To the Moon dura em torno de 5-6 horas. Kan Gao desenvolve a maioria dos papéis na equipe de criação (driblando a falta de recursos e de pessoal), é ele quem compõe a trilha sonora que nos acompanha dentro da imensidão sentimental gerada por duas notas de piano e algumas poucas variações que se repetem ao longo da história. A trilha sonora do jogo foi posta à venda separadamente, 50% da sua renda é destinada a instituições de caridade. To the Moon faz ainda referências literárias, citando o conto A nova roupa do Imperador, de Andersen, entre outras referências à pop-art e se arrisca a tratar de temas filosóficos como a questão da percepção do outro, pensada por Lacan e seus contemporâneos.
Percebem que não estamos lidando com jogos que simplesmente adaptam obras de arte, em geral literárias, o que já foi feito aos montes também no cinema e na televisão? Estamos lidando recentemente com videogames que são concebidos artisticamente, são pensados dessa forma desde a origem, que têm o desejo de serem apreciados a partir desta óptica e não outra, não aquela que os classifica como brinquedos nas prateleiras da livraria ou do mercado.
Um videogame é uma mídia, uma das mais recentes, que não cessa em crescer, em destruir limitações próprias, em transbordar as possíveis colocações dadas para ela numa determinada época, é louvável que caras como Jenova Chen e Kan Gao percebam isso e coloquem em prática seu potencial criativo e artístico nessa coisa que você pode tocar, sentir, ouvir, ver, e que dificilmente vai se desgastar e se cristalizar no museu, se me permitem a brincadeira com algumas das obras de Lygia Pape e Hélio Oiticica.
Danilo Diógenes é estudante de Literatura.