SARGAÇO MAR


Quando se for esse fim de som
Doida canção que não fui eu que fiz
Verde luz, verde cor de arrebentação
Sargaço mar, sargaço ar, deusa do amor, deusa do mar
Vou me atirar, beber o mar, alucinado desesperar
Querer morrer para viver com Iemanjá

Se essa não é a canção mais impressionante do meu avô eu não sei qual é. “Sargaço mar” é realmente uma obra prima. A melodia anuncia o que a letra ao mesmo tempo diz, se alonga e demora no grito “Quando se for esse fim de som”. A vontade é que esse verso dure para sempre. A canção é realmente um fim. A morte é o centro, a boca negra que espera por todos nós e muitas vezes se encontra no colo de Iemanjá.

Ao mesmo tempo que ela invoca a morte simplesmente, se escorre para o lado espiritual e ritualístico bonito do candomblé e dos deuses pagãos. Querer abdicar da vida em prol da simples harmonia com os deuses ou com um deus é um suicídio esperançoso, que traz finalmente a harmonia mas também dor.

“Doida canção que não fui eu que fiz.” O autor nega sua autoria. Que diabos é isso? A morte não tem voz nem muito menos os deuses falam a nossa língua. A imagem é nula, uma tela preta. Parece que toda a narrativa quase cinematográfica de Dorival Caymmi de repente se torna a morte, o encerramento de tudo, a aceitação da finitude e também da eternidade de sua obra e sua alma. Uma alma de semi-deus, um objeto etéreo que nos acompanha por mais que não o vejamos.

A obra de meu avô é assim, um éter colorido mas algumas vezes negro. E é da boca negra e disforme da morte que trata a canção. Os amantes da tragédia grega vêem também um potencial narrativo nessa canção parecido com a descrição de uma catarse. O ritual do sacrifício, o ritual do próprio sacrifício e a morte em prol da eternidade.

Esta canção é o ponto final, o literário buraco negro.


Alice Caymmi é cantora e compositora.