E EIS QUE VAI TER COPA, MAS JÁ NÃO TEVE A COPA



Desde que a Copa do Mundo começou a ser disputada em 1930 somente em duas oportunidades não teve Copa. As duas nos anos 1940, a década sem Copa por conta da II Guerra Mundial. Em 1950 o Brasil foi escolhido para sediar o torneio por ser uma espécie de campo neutro, distante dos conflitos europeus, apesar de ter lutado ao lado dos aliados entre 1939 e 1945. O ano de 2014 é a terceira vez que não tem Copa do Mundo da FIFA, porque futebol vai ter, mas o resto que foi prometido, todo o legado, todo investimento, tudo isso que dizem que a Copa do mundo aporta a um país, isso já não teve.

O mundo mudou nos últimos 84 anos e se você buscar os vídeos da Copa de 1962 na internet vai ver que não havia nenhuma propaganda em campo. Em 1970 isso já muda e 1994 é um marco da indústria esportiva pegando pesado nos EUA, mesmo sendo a última Copa na qual todos os jogadores usavam chuteiras pretas. Hoje a Copa do Mundo é um negócio multibilionário e essa história de legado vem como certa obrigação pra FIFA. Uma desculpa de uma empresa privada que vai ganhar muito com um megaevento realizado longe do quintal dela e aí conta praquele pessoal que vai passar umas mãos de tinta na parede da casa. A transformação do futebol em produto não é um privilégio desse esporte, está aí em muitas outras áreas e esferas da vida. Mas e aí? Como um apaixonado por futebol, minimamente consciente do que significa politicamente uma Copa do Mundo, pode fazer pra viver o seu prazer?

Sempre fui um torcedor. Não falo só do Flamengo ou da seleção. Em qualquer pelada de várzea me apego a um dos times. Por alguma razão inexplicável posso chorar com um gol numa partida de crianças onde a bola é de meia e os arcos são os chinelos no asfalto. Torcer é um prazer que sempre esteve presente em minha vida. Os campeonatos oficiais, Estaduais, Nacionais, Continentais e Mundiais, vão elevando esse sentimento ao extremo criando times com suas histórias, seus mitos, suas injustiças, suas verdades e mentiras. As seleções nacionais se confundem com os estados nacionais, mas é engraçado como são outras coisas que não só a alma de uma pátria, ganham também seu status clubístico com fregueses e mandantes, zebras e campeões. Eduardo Galeano, em seu brilhante "Futebol ao sol e à sombra", já havia dito que, fugindo ao nacionalismo padrão, tinha até vontade de aplaudir os adversários dependendo da qualidade do seu futebol: “quando acontece o bom futebol, agradeço o milagre – sem me importar com o clube ou país que o oferece”.

Torcer é um gesto desesperado e apesar do futebol ser um universo majoritariamente masculino o termo torcer nasce no Brasil com as mulheres que iam de luvas aos estádios nos anos 1920. Diante do calor tropical a empolgação se transformava em suor e ao final da partida elas torciam suas luvas molhadas. Quem torcesse mais água era considerada a maior torcedora do clube, a mais desesperada. Cada país tem um jeito de classificar o maluco que apoia um clube ou uma seleção. Na Inglaterra se diz suporter e na Espanha la aficción. Já na Argentina e no Uruguai é hincha porque no início do século XX um roupeiro do Club Nacional de Football de Montevideo “hinchava” as bolas do clube antes dos treinos e partidas. Miguel Reyes não só se dedicava a preparar a bola e os uniformes como, à beira do gramado, gritava sem parar apoiando sua equipe. “Mirá como grita el hincha!” dizia o pessoal que ia assistir ao jogo. Todos queriam ser hinchas como Miguel, que se fazia livre para expressar seu amor dentro de um comportado ambiente aristocrático. Hinchar las pelotas é, além dessa bonita história, uma expressão que significa encher o saco. Mesmo os mais apaixonados por futebol, como eu, estão de saco cheio dessa Copa do Mundo no Brasil. Não é nem preciso enumerar os milhões de motivos que começam com palavras presentes no futebol pós-moderno como lavagem de dinheiro, gatunagem, repressão, violência policial e que nascem de siglas como CBF e FIFA.

No entanto, aquele que torce suas luvas ao final da partida, the suporter, el aficionado ou el hincha é aquele sujeito movido apenas pela paixão, pelo coração, pelo fanatismo, que o impede de ter uma visão racional dos fatos, uma visão isenta e imparcial. O torcedor, na verdade, vê apenas o que lhe é favorável. Por seu amor incondicional ao clube é capaz de desvirtuar as notícias a seu favor. Afinal torcer também é uma palavra oriunda do latim, do verbo "torquere", que tem o significado original de desvirtuar, distorcer, adulterar, tornar, virar, torturar e atormentar. A FIFA, nesse sentido, é a maior torcedora dessa Copa do Mundo, assim como boa parte da mídia oficial que a cobre, ao desvirtuar, distorcer e virar a realidade a seu favor, além de, junto com a PM, torturar o verdadeiro torcedor que gosta apenas de um futebol bem jogado dentro de quatro mal traçadas linhas.

O padrão FIFA adulterou a forma de o brasileiro torcer no estádio, naquela arquibancada coletiva, na qual era preciso encostar os ombros em quem estava do lado. Já havia uma estratificação social no antigo Maracanã, mas nada comparada a que existe hoje, com suas cadeirinhas de garrafa de coca-cola reciclada, cerceadoras. Você não compra mais seu ingresso a um templo, você compra a posse de um metro quadrado, por 90 minutos, dentro de um liquidificador de propagandas, é impossível sair dali sem ser bombardeado.

A vida do torcedor, del hincha, ficou difícil por aqui. Um campeonato de futebol deixou de ser só isso há muito tempo. Mas pra mim é impossível não torcer. Não me peçam isso porque eu não consigo. Quando a bola rola um redemoinho de ancestralidades invade a minha cabeça. Podem tentar chegar aqui e roubar o país todo, estarei do lado daqueles que lutam contra isso e denunciam os abusos. Mas o prazer de torcer as luvas suadas depois dos jogos, esse ninguém vai me roubar. Afinal, conseguir viver sustentando, de alguma forma, os seus prazeres é o que torna possível qualquer revolução.


Domingos Guimaraens é doutor em literatura brasileira, professor da PUC-Rio, integrante do OPAVIVARÁ! e colunista do ORNITORRINCO.
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