BERLIN É MELHOR QUE SALVADOR


Essa paráfrase do grito de torcida carnavalesca do título estimula uma competição entre cidades que nada me agrada, mas depois da experiência de ontem em Berlin, era só nisso que eu pensava: Berlin é melhor que Salvador. Recém-chegada à cidade, entrei num S-Bahn (perdão, a vida de imigrante trabalha com palavras intraduzíveis) ao lado de casa e 30 minutos depois, saltei de frente pro Schlachtensee, uma lagoa enorme de água limpa, uma ruiva linda vendendo framboesa, ameixa, cerejas e até melancia, senhoras grisalhas de peitos de fora, babies rosados, bicicleta, skate, cachorros, uma baiana que me acompanhava tirando sarro dos que caminham sem latinidade no corpo e a gente ria.

Saí de biquíni e para contrariar os amigos berlinenses, fui direto pro Ikea, aquela loja de departamentos sueca que ocupa toda a Europa e salva vidas. Eu também sou contra a padronização capitalista, mas uma arara de roupas por cinco euros é irresistível. Montei minha nova vida com 100 euros, carreguei-a pelo S-Bahn de volta. Aqui é uma certa heresia andar de táxi e mesmo com todo o peso, não ousei. Andei os sete minutos até a estação mais próxima e sobrevivi.

Combinei às 21h num bar em Neukölln, mas me enrolei montando os móveis, faxinando o quarto, ouvindo música e, cariocamente, cheguei só meia noite, ainda sem celular local. Contemplei a paisagem de carinhas alemães, turcas, misturadas. Na entrada do bar, dizia no photos, no lap tops, tão hispter, tão Berlin que cheguei a dar risada. Há uma obsessão de nadar contra a maré pelo Spree, eu adoro, só não dá pra levar ao pé da letra. Olho em volta, sozinha no bar, porque minha amiga já tinha ido embora, obviamente, e penso: ah, vou de caipirinha ou mojito, gim tônica, qualquer coisa para não perder a viagem. Pergunto pro barman sobre o cardápio de bebidas, só para dar uma olhadinha mesmo, antes de pedir. Abro e já na folha de rosto, um aviso enorme: Hier no Mojitos, no Caipirinhas, no Gin Tonics. Ai moço, desculpa, to confusa, não tem nada simples, não? Pego meu drinque hype escolhido aleatoriamente e sento num banquinho apoiado em cima do aquecedor (desligado) para admirar o horizonte humano. Do meu lado, três rapazes, que, sinceramente, nada me interessaram, mas só pelo gosto da prosa em alemão, resolvi puxar assunto. Não rolou. Deve haver um trejeito de entrar na conversa alheia que ainda estou por descobrir.

Recuperei minha dignidade comprando um chip de celular pré-pago por dez euros. Foi só inserir e automaticamente virei uma cidadã com google maps, whatsapp etc. Um aval para caminhada em paz. No mercado, bio-abobrinhas, bio-mostarda, bio-pepino, linguiça vegetariana, tinha até bio-algodão para tirar maquiagem, mas achei demais, a vida orgânica tem limites.

Ao lado da minha casa no Rio, tinha um bar chamado Alfa, que me frequentava naturalmente. Aqui ao lado, tem uma betahaus. Atravesso uma concessionária de automóveis e ao fundo fica esse lugar, um espaço onde se reinventam relações. É muito pós-humano, pós-contemporâneo, mas não imaginem luzes neon, não é nada espetaculoso. Móveis de madeira simples, que causam dor, por terem perdido suas curvas, tudo prego e martelo. Uma coisa meio Enzo Mari, o designer italiano que faz manuais de como montar seus móveis by yourself sem precisar de quase nada. No café, bio-baunillha, bio-sementes plantadas a 45º numa altitude X próxima à linha do Equador, bio-etc, aquele repertório que já deu para imaginar. Nas mesas de madeiras com quinas pontiagudas (dolorosas), todos eles e elas e seus laptops com suas maçãs batendo cotovelos, um ao lado do outro, muito próximos, exercendo atividades díspares junto aos seus tênis keds, não originais da marca, é claro, e com furinhos. Ao lado da Betahaus, tem o Prinzesinnengarten, um restaurante que planta os temperos e verdes, faz composteira, promove shows de bandas gringas que podem beber de graça e ainda traz o adesivo muito comum em Kreuzberg: Refugees welcome. Ah! E dão desconto de 40% para desempregados que mostrem suas carteirinhas. Os artista pira.

A padaria turca vem com frases que chamam de “Verdades da Turquia” no saco de pão. No meu, veio: “Quem procura um namorado sem defeitos, acaba sem namorado.” No muro em frente à minha casa, um cartaz: “Nada é mais valioso do que o amor. Ele é de fato o poder maior”, frase atribuída a uma mulher cuja imagem me lembra a Índia. Estão me mandando algum recado do além. A epígrafe do primeiro livro que abri ao entrar no avião, do Valter Hugo Mãe, também falava comigo: “Um homem não é independente a menos que tenha a coragem de estar sozinho.” Queria ter nascido gêmea, para ter essa sensação de completude ao alcance do corpo sempre comigo, independente, da situação amorosa, das frases encontradas, da comida orgânica, de Berlin ou Salvador.


Ana Hupe é artista visual.