UMA CARTA PARA GABRIEL PARDAL


Querido,

Comecei a escrever um bilhetinho assim que li aquele seu texto. Apaguei, recomecei, apaguei de novo e me deu um pouco de preguiça de encontrar números, estatísticas, dados e pesquisas convincentes para dar credibilidade aos comentários que eu gostaria de fazer. Além disso, do lado de cá do mercado editorial, sou tomada de uma outra dúvida quando vou preencher fichas de hotel, não porque me sinta dividida ou ache que gostaria de ser escritora, mas pela impotência universal que a gente sente ao assumir uma profissão e ter que se virar com ela.

Da parte do texto que não apaguei, portanto, e que se referem aos 3 tipos de escritores que você falou:

A) Por favor, não seja um deles (embora seu cabelo seja propício). Não por nada, mas é perigoso. Eu estava na Bienal do livro do Rio em 2011 quando Anne Rice foi uma das convidadas da tenda principal. Além de acompanhá-la no Riocentro fiz um pequeno tour com ela por igrejas antigas do Centro da Cidade e pelo Corcovado. Foram dois dias de calmaria e sol que terminaram com uma horda de leitores e fãs góticos e histéricos que foram até a Barra para vê-la. Ouvi relatos de gente que dormiu na fila, vi gente chorando porque não conseguiu senha para ouvi-la falar sobre sua obra e vi o espanto na cara dos seguranças que se fizeram de cordão de isolamento para tentar organizar a fila de autógrafos que ela daria no stand da editora. Ao redor deles, gritos, flashes e gente subindo em estantes, pisando sobre e derrubando livros sem piedade numa tentativa desesperada de fotografar a autora. Por sorte ainda não vivíamos na era do selfie. Imagina... Daquela Bienal guardei uma dedicatória linda de Mrs. Rice na folha de rosto do Entrevista com o vampiro e um ou dois hematomas que acidentalmente conquistei no meio da confusão e da profusão de cruzes, coturnos e batons roxos.

B) Não te dá um cansaço só de pensar? Eu tenho um pouco de desconfiança com gente que é boa em tudo, acho injusto com a maioria das pessoas e torço secretamente para que esta parcela multitalentosa da humanidade comece a se repetir em entrevistas a ponto de ficar chata pacas.

C)  Era dezembro em Botafogo e eu estava numa livraria distraída quando encontrei Adriana. Ela me abraçou e me perguntou tantas coisas que quando me dei conta estava contando pra ela da solidão que senti enquanto escrevi aquelas 30 páginas para o trabalho de conclusão de um curso. Contei a ela de como eu tinha uma pilha de perguntas que só crescia, de como comecei a achar maluca essa paixão que também só aumentava e que era só minha, de como de repente não fazia sentido escolher tantas palavras para falar de um assunto sobre o qual ninguém precisava saber, de desejos que ninguém devia sentir, de danças que ninguém iria dançar. Ela me olhou por um tempo, sorriu, balançou a cabeça, “é isso mesmo, não tem mais volta.”, e entrei num táxi pensando se isso é mesmo irreversível, se é como uma torneira eternamente quebrada. Alguns meses depois encontrei um poema que fala disso: “CUIDADO AO CÃO / que morde dentro”*. Por mais que se saiba como quase tudo é um convite ao desterro nessa categoria, é evidente: seu cabelo também se aplica, e aquele trecho em que você escreve sobre ser um escritor da classe D não deixa dúvidas.

Encontre feriados.

Um beijo,
Julia