O PORTEIRO É NOVO - SHOW FINAL DO SPC




“O porteiro é novo, ele não me conhece, tá cheio de suspeita está desconfiado, pega o interfone, fala pra ele, que ele tá falando é com seu namorado”


Existem certas experiências na vida que nos afetam profundamente de um modo estranho. A intensidade do vivido vem justamente da impossibilidade de nomear o que nos comove. É uma ausência de sentido, plena de sentido. Não falta nada, mas nada está no lugar certo. Não é amor, não é raiva, nem rancor, é qualquer coisa quase tudo isso, mas diferente. Não é angústia. Há um certo prazer envolvido, mas é preciso um certo estofo pra sustentar tanto deslocamento, é preciso alguma dose de coragem.

Os versos da canção Interfone do grupo paulista Só pra Contrariar, que servem de epígrafe a esse texto, produziram em mim esse tipo de experiência desde a primeira vez que os ouvi: no comecinho dos anos 2000, em um show da banda de rock carioca Zumbi do Mato. Eu me lembro muito pouco desse show. Nem sei bem onde aconteceu, nem quando, mas tenho a lembrança muito nítida dessas palavras ecoando em mim, em um ambiente escuro, me jogando pra longe dali. A palavra interfone, cantada em uma fusão incongruente entre o rock e o pagode, produzindo um estado difícil de sustentar, mas bom, abrindo passagem pra outra coisa, ainda desconhecida.

Talvez por vontade de experimentar outra vez essa sensação, aceitei o convite da Clara para assistir ao show do SPC no Barra Music. A minha amiga convidou além de mim, outras vinte pessoas, e para incrementar o inusitado do acontecimento, alugou um micro ônibus que saiu da Cobal de Botafogo em direção à zona oeste do Rio.

Desembarquei do micro ônibus em frente à enorme casa de shows com a minha comitiva de amigos, e deixo para os leitores a imaginação sobre o ridículo da cena, as questões sociais e políticas envolvidas nesse gesto colonizador, e tudo o mais para o que me falta o distanciamento necessário para poder descrever (talvez, no fim das contas, seja sobre isso que falo).

Nesse dia resolvi não beber nada além de água e a minha sobriedade, que não me deixava vibrar na mesma sintonia embriagada e extasiada que me cercava, transformou o show em um profundo mergulho pra dentro, resgatando memórias, ressignificando experiências. “O porteiro é novo, ele não me conhece” se transformou na minha frase de Vinteuil, de Em busca do tempo perdido.

De repente, eles estavam lá. Os 9 músicos do Só pra Contrariar, na minha frente, em um palco imenso, cheio de luzes que giravam em todas as direções. No meio deles, vestido em um terno preto brilhante, Alexandre Pires cantava as canções que compunham a trilha sonora secundária da minha adolescência, aquela que não tocava no meu quarto, mas na televisão esquecida ligada na sala, em um programa do SBT.

Ao vivo, o SPC e seu batuque eram muito mais potentes do que na televisão. Mas a cada acorde, a cada toque do saxofone eu me lançava mais pra fora de mim e dali, e de repente não era mais 2014, e de repente eu não estava mais no Barra Music.

De repente, era 94, e o presidente eleito era o Fernando Henrique Cardoso. E a moeda era o Real, e junto com esse pacote vinha uma caretice normativa da qual parecia que não sairíamos. Mas vinha ao mesmo tempo a sensação de que a desigualdade nauseante que nos constituía como país não seria mais considerada como algo natural e imutável. E tudo isso aparecia no terno brilhante do Alexandre Pires, e no seu rebolado ao mesmo tempo dionisíaco e econômico: eficiente.

E de repente, era eu ali, patricinha de formação, enfiada em uma calça bag, que me vestia muito mal, um top roxo e um Nauru castanho, tentando fazer parte de alguma coisa que eu sabia que nunca faria. O pagode entrando pelos poros, e sendo mal digerido na minha impotente antropofagia.



O porteiro que não deixa o cara subir porque está desconfiado carrega em si toda essa história. Touché para o SPC, para o Zumbi do Mato, e pra mim, assistindo ali do camarote, aquela casa lotada, aquelas luzes frenéticas e os meus amigos que dançavam a possibilidade de tudo ser diferente.

A caretice dos anos Fernando Henrique parece aos poucos chegar ao fim. As ruas estão cheias, a profissão de porteiro está ficando escassa, e eu não uso mais top e Nauru. Mas, caraca, foda, Brasil! Até quando nossos corpos vão carregar a marca dessa desigualdade constituinte, que barra pessoas na entrada social do prédio, limita possibilidades de encontros afetivos, eróticos, pensantes?

Até quando vamos ter que aturar os gritos de “Vai pra Cuba?”, o desejo da volta da ditadura, o pacto de governabilidade, a Katia Abreu, os presos políticos, as escolas particulares brancas, as babás de branco? Será que um dia conseguiremos descosturar esses laços violentos que nos ataram na própria pele?

Não será sem certa violência, eu mesma me respondo... Talvez o sonho da inclusão seja uma ilusão de harmonia que o sangue derramado do passado não deixa tornar possível.

Saímos do show e voltamos no micro ônibus. Eu olhando pela janela, como nas excursões da escola que me marcaram na infância. O Rio de Janeiro passando ali, de madrugada. Fiquei com vontade de entrar em algum buraco onde estivesse acontecendo um show do Zumbi do Mato, quem sabe eles não fazem como o SPC e se reencontram?

Fomos comer no Cabidinho. Peço mais uma garrafinha de água mineral. Fumo um cigarro com alguém que acabou de se formar em fisioterapia. O dia amanhece. Em certos momentos tudo parece possível, e surge a pergunta: “O que fazer com essa tal liberdade?”


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