Acabo de ler o The Long Trip – A prehistory of Psychedelia do inglês Paul Devereux. Lançando mão da arqueologia, da
antropologia, da linguística para fazer uma longa viagem psicodélica através
das eras, Devereux chega a uma constatação matadora: vivemos numa sociedade
excêntrica no que diz respeito a sua relação com o uso das drogas psicoativas.
Sua longa pesquisa mostra como o
uso das drogas está presente de forma ritualística em quase todas as sociedades
pré-históricas, estabelecendo o sentido de pré-histórico não como um período
determinado no tempo, mas como uma relação dos povos com um tempo cíclico sem
catalogação e não com um tempo linear catalogado. Sendo assim a pré-história europeia
termina antes da pré-história na América do Sul. O século XX é o filho
equivocado dessas eras, um yuppie ligado no que é real, contra o imaginativo,
caretão e cerceador.
As maiores críticas de Devereux à
proibição das drogas no século XX é que as pesquisas científicas sobre essas
substâncias sofreram enormes interdições e, por um enorme preconceito, mesmo os
estudos mais sérios, ficam relegados a um segundo escalão intelectual. A
proibição do LSD nos EUA é um exemplo disso. Ao ser sintetizada pelo químico suíço
Albert Hofmann [1] em
1938 a substância passou a ser pesquisada para o uso medicinal, mas só chamou a
atenção da CIA nos anos 60, com o crescimento de seu uso recreativo por parte
da população americana. A CIA realizou uma série de pesquisas sobre a
substância levando em conta seu potencial para o uso militar na alteração do
humor, na limpeza de memórias indesejáveis e na lavagem cerebral. Sem encontrar
os resultados esperados o governo Americano resolveu proibir a substância.
A viagem de Devereux começa com
um intenso relato de sua primeira experiência justamente com o LSD e de como
ele criou um grupo de amigos que experimentavam, de forma controlada, as
fronteiras finais dos estados de consciência alterada. Aldous Huxley, entre
outros autores, abriu a cabeça de Paul, seus amigos e toda uma geração dos anos
60 para a retomada dessa longa viagem através da consciência humana, depois da
interrupção sofrida pelas proibições que começaram nos anos 30. Devereux não é
apenas um doidão inconsequente e alerta para o perigo das drogas e seu uso sem
cautela, sendo essa uma de suas críticas à geração hippie dos anos 60 e 70 que
estaria ligadona, mas não sintonizada.
O livro caminha da idade da pedra
europeia, passando pela África xamanista e se estende pelas tribos do novo
mundo. A pesquisa acaba se concentrando no ocidente, pois, segundo Devereux,
das mais de meio milhão de espécies da flora do planeta umas 150 tem
propriedades psicoativas e 130 delas se concentram no hemisfério ocidental. Como
a enorme maioria dessas dádivas da natureza foram descobertas pelos pajés e
xamãs do novo mundo o maior capítulo dá conta da pré-história psicodélica nas Américas.
Mesmo indo tão longe o livro traça muitos paralelos com tempos históricos mais
próximos de nós como a Grécia antiga, a Europa medieval e a guerra às drogas durante
o século XX.
A leitura do livro deixa claro
como nós, seres humanos dos séculos XX e XXI, temos um enorme preconceito e
sabemos muito pouco sobre como usar essas substâncias. Com muita informação,
pesquisa e grandes doses de humor, Devereux te conquista ao naturalizar entre
os humanos o uso das substâncias psicoativas. Para ele somos todos hoje seres biologicamente
ilegais, uma vez que temos opiáceos em nosso fluido cérebro espinhal. Os
títulos dos capítulos como: Stoned at the
Bones [2],
sobre o uso de ópio e canábis na idade da pedra, e High old times in the new world [3],
sobre o uso de substâncias psicoativas no novo mundo, dão o tom da escrita
fluida e canabinóica do livro. Uma pena que
uma pesquisa como essa, publicada em 1997, não tenha uma tradução em português.
A literatura não fica de fora dessa
onda e Aldous Huxley, Thomas de Quincey, Charles Baudelaire, Bob Dylan, Allen
Ginsberg são chamados pra uma conversa de igual pra igual com os xamãs, pajés e
seus pupilos que empreendem uma profunda viagem química por dentro da
consciência e do inconsciente humanos.
O livro mágico de Devereux nos
conta uma intensa e lisérgica história sobre uma longa pesquisa humana com as
drogas, uma pesquisa que nos leva a questionamentos filosóficos sobre o que é
realidade e o que não é. A viagem pelos estados alterados de consciência nos
permitem ver que existe uma matriz n-dimensional no universo que nos rodeia e
que não necessariamente precisamos ficar trancados nesse modelo ao qual
chamamos realidade.
Segue a luta de muita gente
contra a guerra às drogas e por uma política educativa e informativa sobre
alucinógenos e substâncias psicoativas. Independente dos impedimentos legais a
longa viagem através da consciência humana continuará rumo ao futuro, assim
como emergiu, misteriosamente, no passado.
__________________________________________
[1] Albert Hoffman morreu em 2008, aos 102 anos de muitas viagens, lutando pela legalização e pelo ensino do uso das substâncias farmacológicas psicoativas.
[1] Albert Hoffman morreu em 2008, aos 102 anos de muitas viagens, lutando pela legalização e pelo ensino do uso das substâncias farmacológicas psicoativas.
[2]
Doido de pedra até o osso.
[3] Altos
velhos tempos no novo mundo. (traduções livres)
- A CULTURA DA VIOLÊNCIA
- NÓS, ELES E O ATENTADO AOS CHARGISTAS
- ILUSTRADORES EM RESPOSTA AO ATENTADO CONTRA O CHARLIE HEBDO
- EM BUSCA DO LEITOR PERDIDO
DOMINGOS GUIMARAENS
Doutor em literatura brasileira, professor da PUC-Rio, integrante do OPAVIVARÁ! e colunista do ORNITORRINCO
|
Leia também
- NÓS, ELES E O ATENTADO AOS CHARGISTAS
- ILUSTRADORES EM RESPOSTA AO ATENTADO CONTRA O CHARLIE HEBDO
- EM BUSCA DO LEITOR PERDIDO