A
diferença entre morar na São João Batista e morar no São João Batista vai para muito
além da vogal para ser a maior das concebíveis dentre as coisas deste mundo. Talvez
o que fascine mais seja exatamente isso de experiências tão distintas poderem
dividir o mesmo espaço, o mesmo nome. Naquele pedaço de mundo, o quarteirão
convida os olhos para um tour pelo mistério da convivência entre as palavras e as
coisas, e essa é a hora do texto em que você chega pra cá, me dá a mão, e a
gente faz juntos um street view:
Aqui
estamos de frente para o São João Batista. Com um zoom + pra porta de entrada a
gente bota os olhos sobre a bela, temível frase que resume os serviços ali
prestados: Revertere Ad Locum Tuum –
isto é, Retornar Ao Lugar de Origem. Num giro de 180 graus pra qualquer um
dos lados, damos as costas para o São João Batista: ficamos, então, diante da
São João Batista. No respeitável logradouro, logo podemos ir contabilizando
elementos de sua fauna digna do melhor realismo fantástico das ruas: à direita,
o quiosque de flores e, logo atrás, o Prezunic, preço baixo todo dia; na
esquina à nossa esquerda, o botequim não simpático Lanches Príncipe, com seus
sanduíches de sei lá e ovos cozidos multicores. Adiante: a Azevedo Tintas, o
Martelinho de ouro, a Moartes Esquadrias de alumínio (telefax 2286-3293) e depois
o prédio amarelo onde funcionava a academia de boxe, que agora está pra alugar.
Adiante. O prédio da Net seguido do fabuloso Teatro Poeira. Adiante, a Galvotécnica
– Niquelagem, Cromagem, Prateação e Douração. À direita, quando acaba o muro do
Prezunic, a casinha amarelo-claro onde antigamente era o Museu do Teatro (que
eu nunca entendi muito bem o que era e agora também não sei te dizer o que
virou). Vem o Auto-center Monroe Silenciosos e Radiadores e, pronto, era aqui
que eu queria chegar, entre o Auto-center Monroe e a Import Mecânica (Passo
Este Ponto tel 9540-5000): aqui. Você vai saber que é aqui por causa do modestíssimo
letreiro. É preciso conseguir um bom ângulo para reconhecer sem enganos, por
trás do poste e do emaranhado de fios aparentes; em caps lock azul- cansado, lá
está ela: a palavra AMOR.
Mas,
revertamos ad locum tuum: o São João
Batista. Para desgosto das construtoras de hoje - que em qualquer espaço entre
duas margaridas dão um jeitinho de erguer um edifício de 20 andares - o
cemitério São João Batista ocupa um espaço imenso e se localiza em pleno meio
do bairro, numa área em que, hoje, a miniatura de uma kitnet PP está valendo os
olhos da cara da sua mãe; dá-se ali um acirrado e silencioso duelo imobiliário
entre a necrópole e a vivópole; um tour
de force do jazigo-perpétuo versus
quarto-e-sala, em pleno coração do cartão postal.
Impossível
não pensar em um empresário “do ramo”
vertendo uma lágrima de sangue a cada vez que entra ou sai do Túnel Velho e dá
de cara com tamanho “desperdício”: a morte a refestelar-se nos braços desta
vasta terra, ocupando espaço deitada num metro quadrado tão valorizado;
impossível não pensar na lágrima de sangue escorrendo pela gravata do empresário
enquanto ele sonha com erguer ali um condomínio de luxo sobre as ossadas
removidas, substituindo catacumba por estacionamento subterrâneo, com direito a
piscina olímpica, salão de beleza e, por que não?, quadra de squash. Mas se a área que o São João
Batista ocupa deixasse de dar residência aos mortos e passasse a oferecer domicílio
aos vivos - ele pensa - não teríamos apenas um novo condomínio e, sim, todo um novo bairro, disputado à tapas!, nesta abençoada Zona Sul do Rio de Janeiro.
A
despeito da aparência francamente tenebrosa que impõe às vistas de quem passa
por ali, o São João Batista é considerado um dos mais ornamentados cemitérios
brasileiros (segundo a Wikipedia), com centenas de mausoléus e sepulturas
artísticas . Certamente, do outro lado da rua, quem faz compras no Prezunic
empurra o carrinho sem ter consciência de estar tão perto de criptas da
Academia Brasileira de Letras ou dos restos dos soldados brasileiros mortos na
Primeira Guerra Mundial. Antes da existência do monumental São João Batista, havia
um pequeno cemitério em Botafogo. Ficava ali quase na Urca, no que hoje
conhecemos como Iate Clube - ou melhor - como muro do Iate Clube. Bem antes de
tudo, e principalmente do Iate Clube, aquela praia era acessível a todos e por
ser o lugar ideal para olhar os barcos partirem barra afora, era conhecida pelo
belo nome de: Praia da Saudade.
O
cemitério da Praia da Saudade era destinado ao sepultamento de internos do
Hospício Dom Pedro II (a nossa UFRJ de hoje). O curioso caso deste cemitério
foi que, devido à sua proximidade com o mar, vez por outra vinha uma ressaca
mais forte e desenterrava todos os
mortos de suas tumbas. Motivo justo para que ele fosse desativado e seus
mortos transferidos para o novíssimo São João Batista quando de sua inauguração,
em 1852. A título de curiosidade, um desses mortos transferidos foi o Álvares
de Azevedo, aquele importante poeta que você sempre teve preguiça de ler na
escola e até hoje com certeza ainda tem.
E não
apenas de Álvares de Azevedo vivem as saudades do São João Batista. Uma das
aleias mais visitadas tem o apelido salafraio de “Vieira Souto”. O motivo, você
já entendeu: só morto de primeira linha. Na “Vieira Souto” estão, por exemplo, os túmulos de Santos Dummont, Antônio Carlos
Jobim e Luís Carlos Prestes. Uma espécie de calçada da fama, só que não. Nas imediações,
você pode também dar um alô para Carmem Miranda, Carlos Drummond de Andrade,
Cecília Meireles, Chacrinha, Chiquinha Gonzaga, Clara Nunes – isso a gente
ficando só na letra “C”. De maneiras que, se é verdade que o Woody Allen tem
mesmo vontade de filmar no Rio, eu não teria dúvidas de onde ele deveria
experimentar passar a meia-noite.
Voltando
à São João Batista e ao estabelecimento de porte bem menos majestoso onde lemos
em caps lock azul-cansado a palavra AMOR. Trata-se, como você pode ter
imaginado ou não, de uma antiga oficina de AMORTECEDORES. Era essa a palavra
inteira, algum dia: AMORTECEDORES. Nada mais coerente com o endereço. AMORTECEDORES.
Sim: o amor definitivamente tece dores na São João Batista. Importa ressaltar a
mão pesada do tempo e seu admirável trabalho de derrubação de letra ali. A
gravidade escolhendo que, de todas as dores tecidas, no final das contas, o que
sobraria seria somente o AMOR. Cabe agradecer profundamente ao descaso dos
responsáveis pelo letreiro, por deixarem as coisas como estão.
Imediatamente
antes do AMOR, o que líamos ali era AMORTE. Assim, a teoria que desenvolvi no
meu convívio com esse lugar é a de que as DORES teriam sido as primeiras a
cair; uma espécie de Revertere ad Locum
Tuum já que, se as dores estavam ali justamente por o amor ter sido, é o amor tecido a única coisa que poderia vir
a ser maior que a dor. Seria então a gravidade querendo nos dizer que a luta se
configura através de um amor que ainda tece, ainda está tecendo, e não AMORTE
sendo. Nada disso seria possível se o CE tivesse caído antes. Sem o CE
ficaríamos apenas com AMORTE e as DORES, portanto sem ação, sem verbo com o
qual tentar voltar a dar sentido ao que ficou. Noves fora zero, na São João Batista o amor tece
dores mas há também os amor tecedores - aqueles que sabem que o amor é o
material de que as coisas são feitas.
KELI FREITAS
Atriz, dramaturga e colunista do ORNITORRINCO
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