CINEMA SAFARI


Ela vai. Vejo cá sua touca e meias de mesmo verde e alguns crespos fios ruivos que insistem. No semblante dela pouco resistem o medo ou a tristeza. O semblante dela teima com rugas, olhos pequenos e os dentes tantos. Digo toda cirurgia “bom show. Não vá muito longe”. E, embora tenha já ido longe demais, até hoje volta sempre ela que nunca sei se vai mesmo voltar.

Envelheço dez anos feito eu fosse uma casa. Fico pensando nos animais que têm a sorte da não consciência da morte e são por isso imortais enquanto vivos. O uirapuru canta enquanto espera que todos os outros pássaros se alimentem e, só quando vazio o habitat, se aproxima para comer, mal sabendo que pode, antes, morrer de fome cantando. O filhote da girafa ao nascer despenca de dois metros e meio do ventre de sua mãe que não se deita pra parir. Num único dia uma andorinha come duas mil moscas. Nenhum deles pensa na morte ou, porquanto, na vida.

Os ponteiros, enquanto ela lá, apontam todos pra minha falta, pro meu buraco. Os ponteiros, enquanto ela, aprontam todos com a minha coragem. Eu sei que quando ela vai, leva emprestados todo órgão ou membro que em mim habitam. E que, caso não volte ela, terei eu que aprender a viver ôca pelos dias que se seguem. Tem que é no vazio que se instauram as lembranças e que são elas inexauríveis. Os espinhos do porco-espinho o ajudam a flutuar na água. Tem um músculo na minha garganta que eu só sei que existe quando desliza a maca, no bater das portas do centro cirúrgico. Tem também o soro. Tem a criança. Tem um astronauta pirofágico que pousa no topo de minha cabeça. Tem a música de Caetano, qualquer uma. Tem o resto que sou eu a penas.

Ernesto Artillo
No meu bairro imaginário vou ao cinema no enquanto das suturas dela. E me enternece a bilheteira que jura me vender uma história. Dá-se que lembro nada sobre filme algum que tenha visto nos durantes. A memória do Peixe Dourado dura apenas três segundos. Tem também o pipoqueiro muito generoso no leite condensado. Leite condensado é das invenções mais geniais da humanidade; dessas coisas que o homem cria contra a morte. Mas nessa hora desce só salgado que é pra manter a pressão.

Fico sentada tecendo retalhos de nossas vidas e é desesperador a pouca memória que me sobra de minha infância. Começo a ter palpitações em pensar na falta da dela completando a minha pouca. Tem eu que só ela lembra. Esse vai pro limbo. E isso que a gente tem de eu começar uma história e ela terminar: “mãe, e quando o meu sonho era ir morar no polo nor?/” - ela - “/te pra ter uma criação de pinguins. E quando você inventou na escola que tinha em casa um elefante que não crescia? Me conta a história do sonho que você teve com a zebra que vinha do mar pra falar que tua sorte acabara ali?”. Não fosse por este texto, os pinguins, o elefante, desapareceriam com ela no dia de sua morte sem zebra.


Na maioria das vezes estou sozinha na sala. Nada muito diferente da vida. No saguão do cinema preferido do meu bairro imaginário tem um café, um sebo que é também uma loja de coisinhas, um banco de mogno no meio de tudo, cadeiras debruçadas sobre mesas e um sofá. E uma espécie de cumplicidade residente no espaço inabitado senão por pássaros e répteis; todos absolutamente silenciosos. Outros bichos são restritos às salas de exibição. Os pássaros cantam todos, mas só sei disso porque têm bicos que abrem e fecham, cada espécie na coreografia que lhe cabe. Som nenhum a não ser o que faço na minha cabeça enquanto equilibro o astronauta.


No cinema do meu bairro imaginário tem em cada quina um relógio de pé. E do lado de cada relógio, um mastro de bandeira tremular com uma foto de cada pessoa morta da minha vida. No verso de cada foto, um tipo de árvore diferente. Milhões de árvores são plantadas acidentalmente por esquilos que enterram suas nozes e esquecem onde as esconderam. São os pássaros que mantém as bandeiras em movimento, vento não há. Ora pessoa, ora árvore. Toda hora saudade. E o pânico de que em breve minha mãe estampe as bandeiras do meu cinema preferido. Me mantenho atenta à sua imagem como se estivesse ao seu lado enquanto abrem o corpo onde morei. As abelhas dormem nunca. Não existem répteis no Polo Norte.


Quando volto pra buscar minha mãe ela está sempre me esperando. Quando eu era criança minha mãe se atrasava pra tudo. Hoje está ela sempre lá; nos delirios pós-anestésicos quando teima em discorrer sobre obediência e lucidez. Minha mãe tem muito medo da loucura. Me pergunta as horas com intervalos mínimos e se assegura ciente do tempo que passou. O recorde de tempo de vôo de uma galinha é de treze segundos. Quando volto pra buscá-la, num percurso que vai do CTI ao quarto do hospital em que está internada faz ano, parece que todo o meu pavor perde o sentido como fora bobagem. Ela não me deixa nunca, essa mulher. É casada com a vida sob lealdade de um touro. E não me deixa. Jamais.


Mas a verdade é que cada vez que minha mãe veste toucas e meias verdes, morre ela um pouco aqui. E com ela morro eu. Porque nos enquantos de cinema é como se ela não existisse no mundo a não ser no meu desejo. Na minha súplica. Nas bandeiras que não refletem seu rosto para mim; pra me manter respirando enquanto minha mãe nem isso senão por aparelhos. Os mosquitos são atraídos duas vezes mais pelo azul que por qualquer outra cor. E eu já me sinto uma casa antiga de cor qualquer, pé direito alto e fiação comprometida.


Pelas minhas contas, nos últimos seis anos, eu já devo ter dado até logo sem saber se era adeus à minha mãe pelo menos umas catorze vezes. As minhocas podem ter até quinze pares de coração. Uma formiga consegue carregar qualquer coisa que tenha cinquenta vezes o tamanho de seu peso. Eu sou gente só.



Luana Carvalho é escritora, cantora e compositora.