O MEDO CORRÓI NÃO SÓ A ALMA, MAS MUITO MESMO DO CORPO


“Desde criança a mulher enfrenta aquela dissimulada agressão: eram descarados provérbios maldosos, e duros, naquele tom brincalhão. E na dureza do escárnio se o amor-próprio se parte... Pode interromper no corpo aquela natural vibração da carne” 
- Tom Zé

“Desconfio de homens que querem se casar” 
- Gabriela Rossman

O problema da submissão do ser humano à autoridade é algo que até aqui não foi examinado de maneira satisfatória. As pessoas continuam se submetendo a um série de ideias que elas mesmas nem sabem mais de onde surgiram ou porque se fiam naquilo. Nesse sentido todas as 'religiões' continuam prestando um trabalho valoroso na manutenção da atmosfera do medo que impede o ser humano de dar passos mais largos na realização de uma verdadeira alegria de viver consigo e em comunidade.

Obviamente é preciso admitir que alguma vantagem deve advir de participar do espírito do rebanho, mesmo quando ele é, inclusive, anti natural. Além disso, a segurança é algo que está sendo muito mais apreciada que a liberdade e isso ultrapassa a evitar grandes riscos.

Assim, vejamos o caso claro do amor e do sexo em nossa sociedade irracional. Como é possível que a monogamia seja a referência paradigmática de relação sexual amorosa? Como é possível sustentar, senão de maneira hipócrita, a posição que uma moral como esta nos deixa?

O ser humano, apesar de cultura, continua também animal e não há nada que altere essa realidade enquanto ele habitar sua casa/templo: o corpo. Caso a 'consciência' humana um dia passe a habitar outro lugar, talvez a discussão sobre a substância e a prioridade da 'alma' faça então sentido.
A monogamia cristã ou a moral da relação sexual amorosa com um único parceiro até que a morte os separe não é apenas um fiasco criado pela estrutura da família patriarcal, é algo que nos adoece. Não há razões naturais nem razoáveis que sustentem esse tipo de conduta, apesar de que os reacionários interessados na manutenção desta moral canhestra sempre busquem na natureza um refúgio explicativo. Fica claro, no entanto, pela constatação das “traições”, “adultérios” e dos próprios desejos e excitações sexuais por eventuais outros parceiros que a assunção deste tipo de comportamento é muito pouco 'natural'.

Não é que a relação sexual amorosa tenha um caráter “promíscuo” (o sexo, sem dúvida tem tendências fortes), é que não se deveria exigir e pôr no altar uma segurança compulsória do coito, estabelecendo como norma - que quando não demonstra seu caráter coercivo se auto reproduz como paradigma - um compromisso absurdo entre os parceiros que impede 'definitivamente' relações com um outro sob pena de punições severas para a relação.
Acredito que o sexo e o amor são livres e fruto de desejo natural: quando dois ou mais querem, dois ou mais fodem e isso não deve ser lido como o fim do mundo sequer pelo parceiro prévio que não faz parte deste dois ou mais. É dessa força sensual que a moral monogâmica quer privar os seres humanos, que permanecem infantilizados temendo o fim dos “relacionamentos”- no fundo, da dependência.

(Infelizmente o espaço aqui não vai me permitir debater também que esta naturalidade do sexo nada tem a ver com imagens de consumo do corpo como fatias de pizza tão celebrado em nosso tempo hodierno que convive com uma esquizofrenia desnecessária e cada vez mais enferma. A “depravação” quando alçada a modos vivendi, é só um dos efeitos da repressão e da insatisfação da vida sexual amorosa. Escrevi de modo breve a respeito disso na edição 16 quando o Ornitorrinco ainda era um zine: “O desejo sexual esvaziado pelo discurso”. Só quero frisar que não entendo como sadio o sexo privado de carinho, já dizia um poeta: “A volúpia e os desejos são o que a alma possui de mais raro”).

No que toca essa moral monogâmica, as mulheres jogam um papel central, elas são as maiores defensoras deste absurdo, mas óbvio aqui também se encontram muitos homens, especialmente os “carolas”, bem como há - graças a Jah! - mulheres fora deste terreno.

Não digo que as mulheres o fazem de maneira consciente ou porque são estúpidas para defender este absurdo, isso tudo é resultado de uma herança cultural violenta e maldita que reprime o sexo como fonte de prazer, especialmente para as mulheres. Nunca é demais ressaltar que a educação sexual para/entre as meninas foi e continua sendo notoriamente mais cerceadora.

Não é por outros motivos, aliás, já foi dito por uma cafetina, que a prostituição - resultado também da falta de independência econômica das mulheres - está a serviço do tabu da virgindade, da castidade da menina jovem. Depois de crescer com tudo isso, era evidente que muitas delas tomariam no limiar da ofensa o próprio prazer que pode se extrair da prática sexual amorosa.
Ainda que as mulheres sintam uma espécie de instinto materno e ainda que estejam sobre influências de hormônios menos voluptuosos em comparação com os homens (para se pensar aqui um pouco nesse tipo de argumentação que quer 'naturalizar' a moral monogâmica), é completamente limitador, mas mais importante, falacioso supor que o sexo para elas ganhe sentido apenas pela questão da procriação humana ou esteja muito abaixo do que significa para o homem - a pílula definitivamente é uma invenção que irá dilapidar esse lugar. Isso para não falar das demandas distintas dos indivíduos - independente de gênero - em relação a satisfação de suas necessidades sexuais.

Assumindo a situação histórica a que foram submetidas (mesmo acreditando que isto já mudou 'muito') e ainda continuam se submetendo (por sentimento de culpa e inconsciência) ou sendo submetidas (por razões da estrutura familiar, social e religiosa onde estão inseridas) e ainda submetendo (elas mesmas às suas filhas), pode se considerar que boa parte das mulheres permanece adormecida para a satisfação plena de seus desejos sexuais, e o que pode ser ainda pior, tratadas como foram, ainda vejam o prazer genuíno do sexo como uma zona cinza e insensível.

Por outro lado, a moral monogâmica foi e continua, não é possível negar, sendo também uma forma de defesa das mulheres: tanto por questões econômicas (já que não eram independentes), como também porque essa mesma moral condena a realização dos prazeres da carne à mulher estigmatizando - tal como foram as bruxas - toda mulher emancipada ou não que não mantém uma dieta sexual limitada sempre ao mesmo prato. Em outra palavras, defender a monogamia é uma forma de se defender dos problemas que a própria inobservância à monogamia cria, como se não estivessem associados a ela.

Sem esquecer aqui da contribuição nefasta e vigendo por séculos dos homens que tratam as mulheres como objetos e estão mais interessados em conquistá-las e possuí-las que amá-las, respeitá-las. Evidentemente, reforçam muito uma postura defensiva da mulher, mas isso não pode continuar sendo tomado na direção de um caráter ascético que violente os próprios instintos e imperativos sexuais da mulher.

Devo dizer ainda que quando disse amar e amoroso, não estou me associando a algo não menos nocivo e venenoso que foi a idealização do relacionamento do “casal”, tal qual uma série de romances, filmes e canções buscam o tempo todo insuflar dentro desse estado vicioso das coisas.

Não, amar aqui é para ser lido como respeito, carinho, atenção, mas não um tipo de lealdade atado à uma fidelidade nem à uma duração específica: as relações humanas precisam ser sinceras e abertas e a liga destas mesmas relações não deve ser um compromisso anti natural e compulsório. A monogamia não deve ser perseguida, nos dois sentidos. Deixai que ela aconteça, se acontecer, como um fenômeno verdadeiro e não artificial, exigido a priori.

Um episódio que, penso, aborda muitas destas questões foi uma discussão suscitada por um artigo de Allegra Mosty-Owen, publicado no periódico London Evening Standard em janeiro de 2010. No artigo, Allegra (que já havia sido casada antes com o prefeito de Londres, Boris Johnson) no auge dos seus 45 anos, corajosamente comentava sobre seu então recente casamento com um jovem paquistanês e muçulmano de 23 anos.

Ela relatou que sua família estava escandalizada e a censurava com relação ao seu novo casamento e que ninguém estava interessado em saber como ela se sentia. Ela contou ainda que acreditava que o jovem estaria numa posição de dar atenção as suas necessidades quando ela estivesse mais velha e disse que como provavelmente não poderia mais ter um filho, eles concordaram que ele poderia escolher uma outra boa parceira para viverem juntos.

Bom, aqui as críticas públicas - não bastassem as da família - vieram logo em seguida e eram condenações pesadas e em sua maior parte dirigida por mulheres. Sem contar a sempre lembrada diferença de idade e as diferenças culturais, questionavam como ela podia aceitar um casamento como aquele. Como não ser a única mulher daquele jovem?

Diziam ainda que esse viés do islã, que permite a possibilidade do homem se casar com mais de uma mulher, era retrógrado e que na verdade a maior parte do islamismo já adota também a monogamia como moral. Quer dizer, para não parecerem ofensivos mas demonstrando muito etnocentrismo, queriam alegar uma aproximação do islamismo com a moral monogâmica cristã quando na verdade deveriam criticar o fato de que a possibilidade inversa, de um mulher ter vários maridos, está vedada na religião islâmica - até onde sei. Claro, ao invés de dirigir a carga de crítica ao lado não balanceado da moral islâmica, reclamavam mais uma vez pela monogamia!

Ainda que entenda o problema da velhice nos dias de hoje (especialmente nas grandes cidades), até onde vi ninguém comentará o que considero realmente passível de crítica: a manifestação nada soberana de Allegra quanto a sua expectativa de que o jovem viesse a lhe prover 'proteção' quando ela estivesse mais velha.

Acredito que a discussão que trouxe aqui é complicada e vai se espalhando em muitos aspectos, mas não há o que contemporizar com relação ao massacre e ao fiasco levado a cabo em nome da monogamia, ressaltando só que este tipo de moral sexual está ligada ao mundo patriarcal, capitalista e pequeno burguês, leia-se aqui hoje muito dessa mediocridade comportamental defendida a unhas e dentes pela classe média.

Além disso, se é verdade que agora as mulheres começam a se tornar mais independentes economicamente e, portanto, começam a respirar, por outro lado ainda persiste a questão da educação dos filhos dentro da família e do cerceamento dos impulsos sexuais dos jovens, especialmente do das meninas, que a partir de uma certa idade já estão completamente prontas para as relações sexuais, mas não o fazem. Aqui, aos meninos é deixada a opção - que acaba muitas vezes criando a cisão equivocada de carinho e sexo - de frequentar as 'zonas'.


Júlio Reis é poeta, escritor, jornalista e colunista do ORNITORRINCO.