Por que algumas pessoas têm direito de usufruir da cidade enquanto outras apenas vivem para enfrentá-la num esforço diário por sobrevivência? O Brasil tem a imagem de ser cordial e amante da igualdade, mas ainda permanece essencialmente escravocrata e segregacionista. Basta um olhar em qualquer metrópole para vermos que a questão vem de tempos muito anteriores ao nosso. Isto não significa um desejo de viver em eterna contemplação improdutiva, uma volta à vida bucólica e menos ainda uma crítica às sociedades industriais ou ao capitalismo, mas uma tentativa de reflexão sobre a busca pela realização profissional, o que as pessoas fazem com seu tempo livre, a sobrevivência versus a vivência. Nada disso é igual para todos, nem nunca foi.
Eu moro em São Paulo, no bairro do Paraíso (Centro) e trabalho em um escritório no Brooklin (Zona Sul) e levo o mesmíssimo tempo para percorrer os 6km de distância estando a pé ou de ônibus, exatas 1h20 – a diferença é que a pé chego com 600 calorias a menos. Isso é um sintoma de se viver em uma cidade que sucateou o seu Centro, deixando-o entregue ao abandono, onde ninguém quer morar, nem passar. O desenho urbano hoje é definido por uma nova região de concentração de empregos, o chamado “quadrante sudoeste” que reúne os “melhores” bairros, menores índices de mortalidade e violência, melhores serviços, temperaturas mais baixas (porque é mais arborizado), melhor infraestrutura de transporte e um chão tão caro que chega a ser irreal – é a região rica da cidade, que no Rio corresponderia à Zona Oeste. Nela, de forma geral, “ricos” moram, trabalham e fazem todas as suas atividades de lazer, academia, shopping, pet shop, etc., percorrendo trajetos mínimos. Esse quadrante abrange bairros como Pinheiros, Vila Madalena, Brooklin, Jardins e Vila Olímpia, entre outros.
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O Brasil tem a imagem de ser cordial e amante
da igualdade, mas ainda permanece essen-
cialmente escravocrata e segregacionista.
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Entre patrões e empregados existem diferenças fundamentais com relação ao uso da cidade nesse “quadrante sudoeste”. Os empregadores, em geral, moram e trabalham na região e têm filhos que estudam em escolas da região, se deslocam de carro, passando um tempo menor no trânsito em comparação com o empregado que precisa se deslocar de áreas mais distantes. Um empregado que trabalha na Vila Olímpia e é morador da Zona Leste, região mais populosa da cidade, que conta com apenas uma linha de metrô que não alcança todos os bairros e uma linha de trem metropolitano que é super saturada e insuficiente, precisa de muito mais tempo de deslocamento.
Mas as pessoas que vivem em um condomínio fechado de alto padrão no quadrante sudoeste não fazem isso porque têm “corações de pedra” ou são “vilões contra a classe trabalhadora”. É uma questão cultural. Trocando em miúdos, a cidade é injusta porque a distribuição de renda é injusta. As oportunidades são desiguais. Há fraturas profundas entre classes, ainda que tenhamos passado por grandes modificações nos quadros da miséria nos últimos governos.
Imagine que você é filho ou neto de alguém que, por circunstâncias diversas, fez faculdade, teve uma boa carreira em uma empresa, pode comprar uma casa e pagar seus estudos em uma boa escola e uma universidade. Você morou por toda a vida em uma casa no Alto de Pinheiros (exemplo de bairro rico da Zona Oeste de SP) que um dia será sua. Nunca viveu sem carro.
Ou então você é filho de um sertanejo que veio para São Paulo tentar a sorte, empregou-se na construção civil, construiu um cômodo em um lote invadido de Parelheiros (extremo sul) e casou-se com uma empregada doméstica. Você estudou por toda a sua vida em uma escola municipal e começou a trabalhar cedo. Nunca prestou vestibular.
Entre os privilégios ou dificuldades que culminam na vida que esses dois personagens terão, quais são realmente méritos ou deméritos deles e quais são provenientes das oportunidades que tiveram na vida por causa de seus pais? Quais das conquistas do primeiro personagem fazem dele um merecedor da “melhor parte” de uma cidade que deveria ser de todos? Bons estudos costumam desembocar em boas carreiras, mesmo que isso demande grande esforço e trabalho. Ok, eu sei que existem casos de pessoas que começaram pobres e ficaram milionárias por esforço próprio, trabalho, golpe de sorte, mil razões. Pode até ser que seu caso seja esse. Mas aqui estamos tratando do acesso à oportunidade. Nesses exemplos é preciso dizer por a+b onde provavelmente estarão vivendo essas duas famílias e seus descendentes, até que algum deles consiga quebrar um elo dessas correntes hereditárias? E por falar em correntes, é preciso tentar adivinhar as cores das peles desses dois personagens que você provavelmente pensou ao imaginá-los? E, finalmente, qual deles você acha que é o descendente do imigrante europeu e qual é o bisneto do escravo? Isso está incrustado na nossa cultura, simplesmente. É uma herança da nossa miscigenação depois da união de 3 povos tristes.
Quem é mais pobre mora longe do trabalho e de outros destinos e passa no transporte o tempo precioso que poderia ser usado para desenvolver qualquer tipo de atividade intelectual ou prazerosa que melhoraria sua vida em muitos aspectos. É devastador o que a “falta de tempo” ($) para estudo, leitura e outras atividades culturais podem fazer com uma pessoa, mas é bem mais devastador não poder simplesmente não fazer nada, não ter tempo livre para criar, produzir, se divertir.
Esse modelo de vida urbano baseado em sacrifícios traz, além dessa defasagem intelectual, diversos problemas de saúde que começam com o simples fato de ter que trabalhar para sobreviver. Se você não tem oportunidade de estudar a carreira que escolheu, dificilmente trabalhará no que gosta. Aí voltamos ao começo do ciclo que já falamos, dos nossos antepassados – eles te deixaram uma oportunidade de estudar o que você gosta e poder se dedicar integralmente a esse estudo? Algumas profissões nas quais as pessoas precisam trabalham para a mera sobrevivência são desgastantes e degradantes, outras são simplesmente chatas, outras são humilhantes, outras são neutras, mas a grande maioria é exercida para enriquecer alguém ou uma família. Por mais que o trabalho, qualquer um, em si seja “edificante” (existe mérito no esforço), é preciso ter estrutura familiar e/ou financeira para desempenhar sua vida profissional com prazer, o que geralmente determina o sucesso.
Não sou comunista, mas cito aqui o barbudo alemão, para reflexão: “O trabalho é externo ao trabalhador, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito… O trabalho não é a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele.”
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Vivemos o incrível paradoxo de ter que usar o carro para
ir para o trabalho e ter que trabalhar para pagar o carro, nessa
ideia que o Brasil adotou de ser os Estados Unidos dos filmes
de Hollywood dos anos 50 – automóveis, autoestradas,
eletrodomésticos, consumo.
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É preciso ligar as peças do quebra cabeças que faz com que a cidade simplesmente só funcione para algumas pessoas. Em qual momento ela (ou elas, já que estamos falando de metrópoles brasileiras) fugiram do controle? Vivemos o incrível paradoxo de ter que usar o carro para ir para o trabalho e ter que trabalhar para pagar o carro, nessa ideia que o Brasil adotou de ser os Estados Unidos dos filmes de Hollywood dos anos 50 – automóveis, autoestradas, eletrodomésticos, consumo. Não sou contra o consumo e sou a favor dos programas sociais que diminuíram a miséria no Brasil, mas quando isso se faz de forma pouco inteligente, baseado em desigualdade e pulando os investimentos em educação como quem pula um pneu velho na estrada, gera uma infelicidade quase palpável, algum tipo de angústia crônica.
Essa não é uma discussão apenas urbanística, mas profundamente íntima, porque trata das relações que começaram quando o Brasil recebeu as injustiças do mundo num deságue doloroso e sangrento e nunca mais conseguiu se livrar dessa nódoa. O local onde vivemos reflete esse peso histórico, tornando o usufruto da cidade privilégio de poucos, enquanto a maioria apenas a usa como meio de subsistência.
Sim, as cidades precisam de mais metrôs, de catracas livres (acredito que é possível, disso nunca duvidei), do fim da cultura do automóvel, de energia limpa, mas também precisam que a periferias sejam autônomas e estruturadas para que os destinos se invertam. E para isso as cabeças precisam deixar de ser apenas operantes para se tornarem pensantes.
Juliana M. Dias é ilustradora, arquiteta e urbanista.