HOMENDIGO


Um dia desses eu estava passando de ônibus na Esplanada dos Ministérios e vi uma coisa: Um mendigo com uma quentinha na mão.

Talvez você pense: Tá, e daí? O que tem um mendigo com uma quentinha na mão?

Aí eu te respondo: A forma como ele comia. Uma colherada ia pra boca dele, outra pra boca do cachorro.

Imagino que isso tenha chamado a atenção de outras pessoas, como uma coisa ruim ou boa, não sei, mas chamou a minha nos dois sentidos.

O que eu percebi de bom foi que o mendigo, mesmo com a incerteza de que teria algo para comer mais tarde, dividiu sua comida com o cachorro. E o cachorro (que não precisava de coleira para estar com o mendigo), andava com ele mesmo com a incerteza de que o amigo teria algo para lhe dar de comer mais tarde.

E o que percebi de ruim foi que mesmo eu tendo muito o que comer, não trato um mendigo como aquele homem tratou o cachorro.

Aprendi com os dois sobre como aprofundar a relação com as pessoas que vivem na rua. Sempre que posso, ajudo alguém. Uma vez, aqui em Brasília, tive a ideia de juntar uns amigos, encher as mochilas de sanduíches e ir pra rodoviária do Plano Piloto (um local de grande concentração de moradores de rua) pra sentar com eles e trocar ideia comendo os sanduíches juntos. Foi uma coisa muito simples e bacana, gastamos pouca grana, pois fizemos uma vaquinha e o que mais marcou foi o lance da afetividade. Eu quis sair da ideia de dar apenas comida pra fazer algo que também alimentasse a auto-estima deles. No dia a dia ajudo quase sempre que posso. Digo quase sempre porque tenho meus dias de egoísmo em que nem me dou ao trabalho de abrir a carteira pra ver ser tenho algumas moedas esquecidas lá, mas comida eu nunca consegui negar.

Um dia desses eu estava passando de ônibus e vi uma coisa: 
Um mendigo com uma quentinha na mão. O que tem um men-
digo com uma quentinha na mão? A forma como ele comia. 
Uma colherada ia pra boca dele, outra pra boca do cachorro.

Comecei a perceber que a maioria das vezes em que ajudo um morador de rua é quando eles vêm até mim. Poucas vezes tomei a iniciativa. Acho que isso acontece porque para nós essas pessoas se tornaram paisagem. São vistas e ignoradas até o momento que começam a incomodar. Se eles estão deitados em uma calçada, poucos se importam, pois essa cena é algo que os brasileiros naturalizaram, mas a partir do momento que eles chegam pra pedir alguma coisa, ou simplesmente passam perto, são notados com desconfiança, medo, incomodo com o cheiro e a aparência. Então, eles só saem desse tipo de invisibilidade para entrar de forma negativa no cotidiano por causa do preconceito. Digo "os brasileiros" porque não sei como lidam com essa questão lá fora. A gente sabe que quando há algum evento que atrai turistas estrangeiros para as cidades daqui, várias prefeituras tomam medidas de recolhimento dos moradores de rua das áreas visíveis e os colocam em um lugar mais distante, onde não serão vistos. Então para os brasileiros os mendigos podem fazer parte da paisagem, mas para os estrangeiros, não? Por isso que penso que muitos nós naturalizamos isso. Nem preciso dizer que há extrema segregação nisso tudo.

Uma amiga me contou que em uma região de Brasília não há mendigos porque os moradores dos prédios chiques fizeram um abaixo-assinado contra a presença deles. Todo mundo quer a cidade sem moradores de rua, mas pouca gente pensa que a solução pra isso é melhor condição de vida para eles, acham que varrê-los para longe da vista é uma solução, e quando isso não é possível, tentam ignorá-los o máximo que podem. Quem não se lembra do grupo de jovens que matou um índio queimado aqui em Brasília e tentou justificar a barbaridade dizendo que achavam se tratar de um mendigo?

Recentemente outro grupo em uma cidade satélite acertou o alvo. Sabiam que era um morador de rua e atearam fogo no cara. Não vi ninguém comentando nada nas redes sociais, nem em casa nem nos corredores da UnB.

Mas ainda há a esperança. Conheço um cara de SP que já levou um monte de morador de rua para morar na casa dele, para comer na mesa junto com a esposa e filho. Tenho certeza que existe um monte de gente inconformada. Quero ser como essas pessoas, pois não estou confortável na minha posição atual pensando que um dia eu chego lá.

Se o Estado não faz (a gente sabe muito bem pra quem esse aparelho funciona), o que nos resta?


Danielle Barbosa é estudante.