OS TEXTOS QUE EU NÃO ESCREVO



Como são bons os textos que eu não escrevo. Como são perfeitos, como são irretocáveis, todos e cada um dos textos que não escrevo. Gabriel Pardal jamais fez um comentário negativo sequer sobre qualquer um dos textos que nunca lhe enviei. Provavelmente porque é, de fato, impressionante como falam da vida exatamente como eu a vejo, como traduzem o mundo exatamente como sinto. É tão maravilhoso ocupar esse não-lugar, tão esplendidamente glamouroso ser essa pessoa que não sou, que eu desejaria, do fundo do meu coração, a cada um dos meus não-leitores, que pudessem experimentar, por 15 minutos que fossem, este estágio sublime de ser o mais bem sucedido autor de tanto textos inexistentes.

Preste atenção em como é simples a minha vida: acordo bem cedinho e já começo a pensar; escovo os dentes, lavo a louça de ontem, boto uma fatia de pão pra torrar e pronto: já está lá, na minha cabeça, corrigido e editado mais um belíssimo texto que nunca escreverei. É uma coisa natural. Não tenho que fazer esforço algum. É algo que simplesmente está em mim.

Principalmente porque os textos que eu não escrevo são muito comoventes. Lágrimas brotariam, com certeza, em qualquer par de olhos que se sentasse diante de um texto que nunca escrevi. Hollywood mataria Barack Obama a facadas pelos direitos de filmar qualquer um dos textos que eu não escrevo. Caso eu escrevesse os textos que não escrevo para o teatro, compraria um apartamento de 5 quartos em menos de 3 semanas, com toda a certeza. Se interpretado por um ator famoso – e de preferência sem nenhuma gordura no corpo – meus melhores textos nunca escritos ganhariam os palcos de todo esse Brasil e, consequentemente, de todo este Universo, de maneira meteórica.

Certa fez fui convidada a um programa de entrevistas para falar sobre a beleza incontestável de meus textos nunca escritos. Eles insistem em querer saber por que é que não escrevo meus textos, se são tão bons. Tenho que responder o que respondo sempre nessas ocasiões: que jamais poderia estragar os meus textos me sentando para escrevê-los. Por isso não os tenho escrito, não os escrevo, não hei de escrevê-los dia nenhum. Por isso tenho que estar muito atenta.

Sabendo que fui moradora do Méier por muitos anos, Marília Gabriela, numa outra ocasião, me indagou quantos textos inesquecíveis numa viagem completa de 457, de Abolição à General Osório, eu era capaz de não escrever em um só dia na minha adolescência; disse a Marília a verdade: que havia perdido as contas. Nesse exato momento, os olhos de Marília se encheram de lágrimas. Tivemos de interromper a gravação. Isto é bastante recorrente.

Poemas de amor, os meus melhores, é claro: jamais os coloquei sobre o papel. Não poderei, jamais, colocá-los sobre papel algum. Haveria demasiada polêmica, demasiada chateação. Chego mesmo a me preocupar com os rumos da China comunista, caso eu me sentasse para escrever à caneta os meus melhores poemas de amor.

Não tenho tempo para nada: estou sempre ocupadíssima pensando sobre o que será o próximo texto que não vou escrever. Todos querem saber como é que posso não produzir tanto, e com tanta qualidade; querem saber como é que posso dar conta de não acrescentar tanto ao mundo, tendo tão pouca idade e tantos outros afazeres com os quais divido as atenções de pensar os textos que eu não escrevo. Mesmo para mim, é tudo um grande mistério. Gostaria que não me perturbassem tanto. Preciso de tempo para que possa seguir não escrevendo. Não escrever é o que sempre consumiu todo o meu tempo.

Há muitos escritores de minha geração melhores do que eu, é verdade. Mas eles são inferiores, pois escrevem seus textos. Eu, não. Eu, jamais. Por isso me sinto apta a opinar sobre o trabalho de qualquer artista, julgar qualquer espécie de obra em qualquer ocasião: sou simplesmente a pessoa mais perfeita, uma verdadeira autoridade naquilo que deixo de fazer tão bem. Minha falta de aptidão para a banalidade dos que aceitam viver na imperfeição me confere genialidade. Não sei como ainda posso caminhar entre os mortais.

Tenho certeza de que serei imortalizada pelo meu talento inequívoco para não escrever. Vivo confortavelmente. Não temo nada. Ou talvez, uma coisa, um pouco: a lei da gravidade. Pode parecer besteira, mas já me aconteceu de sonhar que morria numa noite de chuva, vítima de esmagamento pelo peso de todos os textos que jamais se libertarão da minha sincera intenção de escrevê-los. Mas tudo não passa de um mau sonho; logo acordo, escovo os dentes, começo a pensar novamente, e antes mesmo que comece a lavar a louça, lá está a minha glória, a minha preciosidade, lá estou eu, brilhantemente empenhada em mais um texto brilhante. Brilhante, sempre, como só poderiam ser as coisas que não ousarei fazer jamais.


Keli Freitas é atriz, dramaturga e colunista do ORNITORRINCO.
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