O FEMINISMO É PARA TODOS?



Tavi Gevinson uma vez disse “O feminismo não é um livro de regras, é uma discussão, uma conversa, um processo”. É porque concordo com essa ideia que faço o esforço de escrever esse texto. Nada do que digo aqui deve ser compreendido como um julgamento, mas como uma avaliação a partir da minha experiência pessoal. Para que isso não soe como um relativismo, talvez seja melhor começar explicando minha compreensão sobre o feminismo. Acredito que o feminismo é – e deve ser – um movimento plural, cheio de conflitos, porque está salvo de uma ideologia e de uma moral. Mas, enquanto feminista, tenho um código ético – que é bem diferente de regras – que passa sobretudo por uma máxima: dar voz às mulheres. Então penso que o feminismo é uma luta plural e sem códigos resolvidos que quer dar voz às mulheres.

Para mim o feminismo é extremamente importante, porque como mulher sou estimulada a não participar de uma série de experiências que a sociedade julga inapropriada para o meu sexo. Ser feminista é algo antigo no que sou por esse simples e egocêntrico motivo. Muitas mulheres precisam do feminismo por razões muito mais urgentes e hoje tento pensar meu engajamento mais a partir delas do que de mim. No entanto, o feminismo é e sempre será uma luta pessoal em que está em jogo o meu direito de escolher como quero viver. Este texto nasce a partir de um incômodo com as pessoas que confundem o feminismo com um livro de regras ou que não respeitam esse movimento enquanto um processo individual pelo qual cada mulher pode conquistar seu próprio empoderamento. 

O feminismo ganhou força nos últimos anos. Essa afirmação pode ser contestável, porque estou falando a partir do que vejo e eu sou uma mulher privilegiada de classe média que mora no Rio de Janeiro e tem acesso (até demais) à internet. Sei que a violência de gênero está firme em muitos lugares do mundo. Mas, com o pouco que a internet consegue, já vejo algumas mudanças. Pelo menos entre eu e minhas amigas há uma indignação mais evidente, não conseguimos mais aturar caladas os assédios cotidianos e essa revolta produz uma união, nos apoiamos. Mas mulheres unidas em uma causa que diz respeito só a elas incomoda, incomoda muito. Junto com essa força vieram inúmeros haters fundamentalistas ou simplesmente babacas que fazem questão de nos ofender em caixas de comentário da internet e na vida real (se é que se pode se fazer essa distinção). É terrível, mas faz parte e é preciso não se abater. Vivemos em um tempo com muitas possibilidades e algumas pessoas, diante do perigo da liberdade, só sabem chamar pelos pais, por uma ordem que diga como o mundo deve ser. 

Porém, não só de violência explícita é feita a repressão. Atualmente vejo um número maior de homens que se posicionam a favor do feminismo e isso é, obviamente, ótimo. No entanto, frequentemente esse apoio vem junto com ressalvas. Aí já não sei se alguns homens estão apenas confusos, mas tentando honestamente entender e participar do feminismo, ou se esse posicionamento é resultado de motivos desonestos. Um exemplo é a onda de escritores que resolveram se ocupar do tema “A Mulher”. Esses textos escritos por homens que amam as mulheres e acham que elas vão dominar o mundo (oi?) são sempre muito elogiosos e passam por temas que vão desde cortes de cabelo – que aparentemente revelam a essência de um ser humano (se ele for do sexo feminino, é claro) – até o gosto por dar. Seria muito engraçado, se esse tipo de literatura ruim não gerasse tanta admiração (e não estivesse ocupando um lugar que poderia ser para alguém que tem algo relevante para dizer). Tenho certeza que esses escritores acham que são feministas. Eu me pergunto quantos textos escritos por mulheres eles leêm. Me pergunto até que ponto eles vão apoiar o feminismo ou se só gostam de mulheres livres quando é conveniente. 

É claro que existem homens que apoiam o feminismo para além desse feminismo feito para pegar mulher. Mas em muitos casos ainda falta uma consciência sobre o modo de se colocar e de expressar suas opiniões. Basicamente, ainda existe muito apego às opiniões. O que eu gostaria de pedir a um homem que se preocupa com a liberdade das mulheres e que quer apoiar o movimento feminista é: esqueça um pouco de você e de suas opiniões por um tempo. Aliás, esse é o conselho que eu dou a qualquer ser humano que queira viver alguma aprendizagem na vida, porque, enquanto nos agarramos as nossas convicções, não há espaço para o novo. No caso de um engajamento em um movimento social é ainda mais necessário, porque você nunca pode compreender a vivência de um grupo oprimido, se não abandonar suas impressões que pertencem a um grupo opressor (Eu , por exemplo, não posso falar pelas mulheres negras, não tenho como compreender de verdade o tipo de opressão que elas vivem, são elas que devem comunicar suas experiências). Observo muitos homens com boas intenções dando opiniões sobre o feminismo e profundamente ofendidos quando uma mulher o refuta. Por que quando um homem fala em defesa da mulher, ele não aceita que uma delas discorde ou o questione seu posicionamento? E por que as mulheres negam essa defesa? E principalmente, se trata de uma opinião ou de um mero pitaco dado sem uma reflexão mais atenta e de fato preocupada com o movimento? Esse tipo de comentário – especialmente em redes sociais – parte de uma tentativa de diálogo ou de uma simples vontade de expor uma opinião engajada e esclarecida? 

Acho que essas são algumas questões que a devemos nos colocar quando vamos opinar sobre uma minoria que sofre algum tipo de repressão. É o mínimo que se deve pensar antes de falar ou de escrever. Se queremos dialogar para tentarmos juntos vencer as desiguldades e injustiças, devemos questionar o nosso privilégio e atentar para que nosso discurso não ratifique de alguma forma a opressão. Escrevo aqui em terceira pessoa para deixar claro que é um processo e que estou nesse processo. Para mim, o feminismo não é um girl power que serve apenas para eu ser livre em minha realidade privilegiada, minha luta não acaba em mim, em função disso, preciso ter a sensibilidade para perceber quando é a hora de falar e quando é a de ouvir. Isso não é apenas um modo de ser gentil com o outro e permitir que ele fale por conta própria de suas experiências. Partir do pressuposto de que alguém precisa ser salvo já é reduzir sua autonomia e cair na mesma lógica que provoca todo tipo de violência. 

Portanto, o que eu gostaria de pedir a um homem que queira apoiar ao feminismo é que antes faça parte: leia textos e livros escritos por mulheres, converse com mulheres, observe como somos olhadas e tratadas nas ruas. E se não poder opinar é incômodo, pense que está indo no caminho certo para compreender qual foi a realidade das mulheres por séculos (milênios?). Um bom livro para entender isso é “Um teto todo seu” em que Virginia Woolf fala sobre as necessidades materiais para que uma mulher possa se tornar uma escritora. Talvez esse tipo de leitura ilumine a questão e demonstre que são anos e anos de silêncio forçado das mais diversas formas, através de constrangimentos morais impostos pelas normas da sociedade ou de impossibilidades financeiras. Jane Austen escreveu seus livros na sala comum de sua casa e precisava esconder seus escritos toda vez que alguém passava por perto. Quando um homem parou para me encarar na rua sussurrando coisas incompreensíveis e eu perguntei “O que foi?” causei uma irritação próxima ao ridículo e recebi como resposta um “Não posso olhar, não?” junto com alguns xingamentos. Em outro caso de reação parecida ouvi “Pra mim mulher é pior que animal, é só um buraco”. Há anos homens falam o tempo inteiro as coisas mais impensadas e violentas. Quantas mulheres podem contar suas experiências de vida sem sofrerem algum tipo de recriminação? Muitas vezes nem nos consultórios médicos podemos ser honestas. Por que alguém deve falar pelas mulheres? O que se encobre nessa necessidade tão urgente de opinar? 

O feminismo é para todos, já que a violência do sexismo afeta ambos os gêneros. Mas ele é um movimento que parte das mulheres e é sobre as mulheres. Isso não se trata de superioridade feminina ou ressentimento pelos homens, é apenas um modo de tentar reverter a desigualdade histórica que condenou milhares de mulheres ao silêncio. O feminismo é um movimento para dar voz às mulheres para que elas possam viver suas próprias experiências, dores, erros, descobertas e para que elas mesmas se salvem da violência a que são submetidas.


Taís Bravo está no mestrado em filosofia na UFF. 
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