ESTE É UM TEXTO SOBRE AMOR


Minha amiga Paula Gicovate recentemente lançou seu primeiro romance, e disse logo na lata, no próprio título: “Este é um livro sobre amor”. A Paula sabe das coisas. Sempre tive com isso certo pudor, como se a palavra amor, já tão suada, diminuísse a poesia ali contida, ou a mim como poeta. Bobagem. Até porque o pudor não apaga os fatos.

“Substantivo Feminino”, meu primeiro livro, era claramente um livro sobre amor. No capítulo que chamei de “Origem” estavam os únicos poemas que tratavam de outro tipo de amor: o amor pela palavra. Dali em diante era amor e desamor e sexo e encontro e fossa – páginas e mais páginas do meu coração escancarado em plena praça. Habitavam ali meus melhores poemas já escritos até o momento e, dentro deles, rapazes variados.

Cinco anos depois, quando lancei “Bendita Palavra”, me orgulhei da variedade de assuntos. Poemas sobre o risco de viver, sobre a invenção de uma casa só minha, sobre a juventude abandonada das ruas da minha cidade, sobre quem eu sou e quem quero ser. Mas, ainda e sempre, muitos poemas de amor. Eu era então uma moça casada, e todo amor ali era amor por um único homem – e toda dor de amor era a dor daquele.

Mais seis anos se passaram desde então. O livro que agora preparo já teve mais de um nome, já conteve poemas que não serão publicados, e tem hoje palavras e histórias que não o habitariam se eu fosse uma poeta mais ágil, e o tivesse lançado há dois anos, como um dia desejei. Vai se chamar “Carne do umbigo” – nome que ganhei de presente do colega de ORNITORRINCO, Vitor Paiva, que terá por isso minha eterna gratidão. Carne do umbigo é gestação, é egotrip, é a possibilidade de cura pro mal que nem se sabe ainda se virá.

Nesses seis anos eu estive casada, planejei ter um filho, me separei, chorei rios, descobri que minha alegria é mesmo dom, e me apaixonei de novo – como pensava que nunca mais fosse. Refiz sonhos e planos, caí da nuvem, chorei mares, viajei de navio, avião, trem e carro, aprendi a andar de bicicleta, tirei férias no verão alheio, me encantei, dei como nunca, tomei pés na bunda e parti sem querer alguns corações. Passei anos quase sem escrever e escrevi quase todo dia durante meses. Falo de amor ainda. Falo do mundo por esse prisma. Aviões que somem, radiação no Japão. O livro novo é triste, disse a irmã. Mas esperançoso, disse a amiga. Combina com quem eu sou.

No processo de fazer nascer o “Carne do Umbigo” me reli bastante, e descobri uma pá de coisas. Coisas óbvias: eu mudei, minha poesia mudou. Coisas óbvias mas não menos surpreendentes: dentro dos meus livros mora muita gente. Me espanto ao perceber que virar poema não tem laço direto com a intensidade ou a duração dos encontros. Um grande amor cheio de verbos no futuro vira um único poema no papel. Um encanto súbito sem nem sexo dentro vira dois. Três meses de paixão ardente e a dor desse rompimento competem com o rasgo imenso do fim de um casamento.

Tem poemas que foram entregues em mãos ou enviados ainda quentes, com a ajuda brilhante da tecnologia. Poemas escritos como mensagens de texto, nascidos do desejo de seduzir, e só depois pescados pro livro. E tem os poemas anônimos, escritos quando o outro já não estava – poemas com dono, mas sem destinatário. Eu sei bem da alegria de ser objeto de poesia, e acho pena que alguns moços andem por aí sem saber que, num livro com meu nome na capa, dormem palavras pra eles. É uma questão de timing: uma vez perdido, difícil consertar. Como mandar um poema prum moço que some? Prum moço que casa? Pra um cujo coração se despedaça ao ouvir sua voz? Praquele cujo nome te faz perder o ar?

Se eu fosse como a Adélia, que começou a publicar aos 40, já casada com o Zé, não tinha nada disso. E como ela disse outro dia na tevê, “quando eu escrevo prosa que não tem poesia, eu não publico: não é literatura.” Ousando desdobrar a descoberta, talvez eu possa dizer que em tudo que escrevo – homens, crianças, casas, mortes, aviões – é de amor que falo.

Este é, então, um texto sobre amor. Ou sobre literatura – o que, pra mim, claramente dá no mesmo.




Maria Rezende é poeta, montadora de cinema e colunista do ORNITORRINCO.
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*Imagem: Cassoday Harder