Pelo jeito com que venho agonizando contra a lógica do mundo, sempre caio na infeliz conclusão de que uma hora dessas vou entrar em colapso. Pirar, enlouquecer, ficar doidinho. Viver me deixa em estado de incômodo constante. E tenho a impressão de que não sou o único. Porque em 2011 diziam: 2011 tá foda! Em 2012: 2012 tá foda! No ano seguinte, a mesma coisa. Mas o que será dito sobre 2014? Vamos repetir essa exclamação ou já nos acostumamos com nossas agonias e aceitamos que o mundo é assim? Será ainda muito cedo para dizer apenas que viver é que é foda?
Eu sei que, se algo te incomoda, é dever seu modificar a sua vida para se livrar da fonte do seu incômodo, mas sei também que as pessoas que, como eu, se sentem bastante insatisfeitas de alguma forma meio confusa e urgente com o mundo hoje, buscam algo parecido com o que eu busco – seja lá o que isso for.
O problema de viver sempre insatisfeito com o mundo é que ele não vai mudar por sua causa. E mesmo assim, por instinto cavamos o tempo que nos resta com as nossas ambições rumo a um estilo de vida que nos satisfaça mais do que agora, mais do que ontem. Já que, no fundo, é como se ainda nem tivéssemos nos realizado.
Aos poucos tomei consciência de que ter razão sobre as coisas, tratar da asma, manter uma alimentação saudável e ser gentil e altruísta com estranhos já não é suficiente para me dar equilíbrio mental. Pois esse mesmo equilíbrio é posto à prova sempre que me percebo jogado no mundo entre fatores alheios às minhas vontades, como de fato estou e estarei. Por isso, para mim, imaginar, desorganizar, desprender-se do monopólio do que é correto e do que é verdadeiro – isto é o que me parece ser o único jeito possível de um sujeito expandir o seu potencial e melhorar a sua presença no mundo. O melhor é bagunçar.
Mas quem está com defeito, o mundo ou eu? Porque, ao ver as coisas de maneira tão crítica como eu vejo, chego a me perguntar se não sou eu um sujeito que, ao ter perdido a razão em dado momento do percurso até aqui, passou a ver o mundo alterado por uma irônica condição sem lógica chamada loucura.
Se você não concorda com meu ponto de vista, tenho certeza de que você vive melhor do que eu, o que é ótimo para você. Mas se você não consegue disfarçar o incômodo diante dessa verdade que eclode dos fatos com frequência demais para duvidar dela, então você é como eu, e tem que lutar muito, várias vezes por dia, para engolir todas as obrigações que parecem ter caído em cima de nós sem a nossa escolha. Você não pode escapar dessa luta, porque o seu inimigo é o próprio modo como o mundo se configura hoje e como você se relaciona com ele. Mais estranho ainda do que o mundo parecer difícil e incoerente é a nossa suspeita de que a dificuldade e incoerência do mundo talvez tenham raízes na nossa presença nele.
Meu esforço atual consiste em tentar provar que não sou eu o insano, e sim o mundo como ele se afigura hoje. Não é que tudo deva virar pelo avesso, nem que toda a história humana tenha sido um erro (ou talvez sim, e o mundo seria assim um erro belo de se contemplar que não nos deixa outra escolha senão aprender com ele, aprender o tempo inteiro – e então, apesar de tudo, nos tornaríamos de fato melhores do que somos agora).
Eu gosto de viver e glorifico a vida fazendo coisas alegres, pois sinto perplexidade por estar vivo. Mas, ao mesmo tempo, sinto me destruir dentro do mundo por uma lógica racional evolutiva extremamente vacilante e incoerente dentro da qual eu me encontro preso a valores e obrigações sem saber mais se por culpa minha ou se pelo modo com que o mundo foi organizado antes mesmo de eu chegar nele. Às vezes até me pergunto se essa contradição, que carregamos em nós, não foi uma espécie de necessidade evolutiva, um processo que envolve tanto o rigor das ciências quanto a intuição, os acidentes, a mentira, o erro e o acaso. Talvez por isso sejamos adaptados a conviver com o absurdo: o mundo em que somos gerados não faz sentido, e mesmo assim tudo cabe nele. Então por que não enlouquecemos todos logo de uma vez? Não seríamos assim mais verossímeis?
O conhecimento da morte nos ampara pelo próprio absurdo que é morrer e nos faz criar obras de arte que servem somente para celebrar a bênção por estarmos vivos, mesmo que saibamos da existência de catástrofes, matanças e problemas sem solução. Entre uma coisa e outra, precisamos trabalhar e pagar contas – o que ocupa quase todo o nosso tempo, de modo que a celebração à vida fica para os momentos de lazer ou entretenimento. É risível que o mundo seja assim, que o seu melhor esteja jogado para escanteio nas nossas rotinas.
Não sei por que precisamos tanto da troca de trabalho, de mercadoria, de palavras polidas todos os dias. Isto parece nos distanciar ainda mais uns dos outros. É como se muito antes de ter havido valores, palavras, comunicação, verdades, ponto eletrônico e vale-refeição, nós e o mundo inteiro e tudo o que existe e todo o vazio cósmico fôssemos, antes de tudo, uma gigantesca massa que se movimenta em um padrão completamente próprio e que, por não haver nada além, está sempre satisfeita, plena, realizada. Mas quando, em algum momento da nossa história, estabelecemos trabalho, consumo e sustento financeiro como pressupostos da nossa vida, então perdemos essa unidade, deixamos ela para trás e nos separamos ainda mais uns dos outros e de tudo o que existe, e terminamos por achar que somos de fato indivíduos descolados do resto, únicos, especiais, capazes de caminhar apenas com um par de pés.
Ao pensar nas conquistas das gerações anteriores às nossas, me pergunto se as nossas urgências são menos urgentes, uma vez que aquelas anteriores às da nossa geração já foram administradas. Ou as questões são sempre as mesmas?
O que estamos honrando e o que estamos desperdiçando daquilo que foi conquistado por outros, antes de nos tornarmos adultos? Embora toda a importância da crítica feita aos nossos padrões atuais (inclusive as minhas), não me parece estúpido pensar que, graças às lutas e inquietações dos nossos predecessores, vivemos melhor do que eles, já que estamos de pé sobre as respostas às suas urgências. Talvez não pareçam ser as soluções ideais, mas foram as respostas que eles, inquietos e sedentos por resolver suas crises, às vezes lutando uns contra os outros, alcançaram. Em outras palavras, houve um esforço, houve conquistas, e agora cá estou eu, reclamando, achando que o mundo vai se acabar a cada inverno e tentando mudar a minha vida para melhor com as minhas próprias ferramentas.
É claro que minhas questões mais perturbadoras estão agindo o tempo inteiro em busca de se resolver. E se eu sou inquieto com elas, é porque elas me exigem pressa. E assim eu rastejo em busca de respostas, e não paro de fazer isto porque sinto me aproximar cada vez mais de algo melhor. Sou como todo mundo, somos como nossos pais (como diz aquela canção).
Por outro lado, acho bem provável que, mesmo resolvendo as minhas agonias atuais, eu continue me deparando com questões novas, questões sem resposta clara e imediata, exatamente como as de hoje. Mas talvez eu me dê com isto de maneira menos perturbadora do que hoje, porque eu estarei mais maduro, eu terei novas experiências e novos fracassos no meu histórico. Ou seria inocência pensar assim?
Mas então eu lhe pergunto: qual o problema em ser inocente quando você já entendeu que o mais urgente hoje é desprezar a lógica do mundo, aquela mesma que nos exige a perda da inocência para dar lugar ao medo?
Se reflito sobre o que vivi até agora, se penso nas minhas conversas mais dramáticas com meus amigos, só posso ver um elemento constante em todas as minhas fases, em todas as minhas crises, em todos os meus estágios – aonde quer que eu me encontrasse em cada uma delas, eu estava inquieto. O que disto sou eu e o que disto é apenas ser humano? O quanto devo me preocupar com minhas inquietações como se elas fossem mais urgentes do que as de qualquer outra pessoa viva? Às vezes me parece que todo sujeito é irrealizável. E mesmo assim (ou talvez por isso mesmo), me sinto alegre. Talvez a ambição da nossa geração seja apenas desorganizar o mundo para nos fazer mais soltos e satisfeitos. E para nos deixar em paz.
Thiago Barbalho é escritor e editor da Revista Rosa.