No centro de Salvador, dois homens de meia-idade subiam uma ladeira bem inclinada e papeavam calorosamente sobre a política local. Eu seguia logo atrás deles, apressando o passo para ficar mais próximo da dupla e curioso para pescar alguma informação ou frase interessante daquela conversa. O que estava à esquerda, mais próximo da rua, ostentava um sorriso simpático, usava óculos de armação pesada e vestia uma farda com o nome de um edifício no bolso da camisa social. O outro parecia mais despojado, usava chinelos e bermuda, parecendo estar num dia de folga, dominava o rumo da prosa e era mais expansivo. Com o braço direito carregava algumas sacolas de compra e com a mão esquerda segurava uma latinha de cerveja.
Era uma cena aparentemente ingênua e agradável de ver. Só que após o derradeiro gole, sem pestanejar, ele simplesmente arremessou aquele objeto metálico para trás bem na minha direção e, após um ou dois quiques, a lata parou bem diante dos meus pés. Num único gesto, a simpatia recém-adquirida por aqueles dois senhores foi aniquilada por completo. Confesso que fico muito impressionado com a falta de vergonha de quem costuma agir assim. É realmente assustador perceber que já vivemos numa sociedade em que um sujeito se sente plenamente à vontade de jogar qualquer coisa no chão da rua mesmo na frente de dezenas de outros cidadãos que comungam daquele espaço.
Mais estarrecedor ainda é o fato de que em episódios desta natureza, quase sempre, somos coniventes com o gesto, simplesmente fingindo que não estamos vendo ou pensando: “não é problema meu” ou “não fui eu que joguei”. E cenas assim tendem a se tornar mais e mais corriqueiras, pois de acordo com dados de uma pesquisa divulgada em 2013 pela ABRELPE (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais), o lixo de todas as cores que produzimos nesta nação verde-e-amarela aumentou 21%. Mais do que o dobro do crescimento populacional no mesmo período analisado.
E um detalhe disto tudo é que boa parte deste lixo quase nunca vai para o lugar correto graças a atitudes como a do senhor que arremessou a latinha de cerveja na minha direção. Lá atrás, em 2010, um estudo realizado pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) apontou que a média diária de lixo produzido por cada brasileiro era de 1 kg. Neste mesmo material há a informação de que o país tinha, já naquele ano, um potencial para lucrar cerca de R$ 8 bilhões por ano com reciclagem, mas que arrecadava bem menos da metade deste valor.
Sei que este é um assunto com opiniões divergentes, e que estou abrindo outras janelas na conversa, e já vou logo confessando que não domino bem o tema e que até li algumas opiniões que defendem que a coleta seletiva não é verdadeiramente um negócio rentável. Mas dinheiro aqui é o que pouco importa. A consciência limpa (como a rua deveria também estar) de um cidadão não tem preço. A minha pelos menos não pode ser comprada ou negociada. Por isso cansei de ficar calado, catei aquela latinha no chão e gritei para o homem exibindo o objeto que ele havia acabado de se livrar:
- Ei, amigo, o senhor acha mesmo correto jogar o seu lixo na rua? Não poderia levar contigo até encontrar um local para jogar essa latinha?
O “pai” daquela lata reagiu como se eu estivesse falando em outro idioma com ele, apertou os olhos com um ar de estranhamento e me respondeu “na lata”:
- Hospital Português? Você quer saber onde fica? É só subir a rua, logo ali na frente...
Daí em diante, ao perceber que ele não estava disposto a admitir a culpa, eu alterei mais ainda o tom de voz e o chamei de mal-educado, falei sobre o mau exemplo que ele estava dando com aquele gesto e que não custava ele ter segurado o lixo por algum tempo. O amigo dele, meio constrangido, se esforçava para intermediar aquele entrevero explicando calmamente ao parceiro que eu não gostei dele ter atirado aquela coisa laranja que deve demorar uns 400 anos para a natureza dar conta. Mas o homem não parecia disposto a reconhecer a falha e insistiu na encenação de me explicar o caminho para o hospital que estava do outro lado da rua.
De lá para cá, não tenho como saber quantas latinhas mais “caíram” da mão dele. Depois do bate-boca, decidi caminhar carregando o lixo do meu algoz por uns vinte minutos em busca de uma lixeira, tonel ou algo parecido. Quase desisti, mas quando estava perto do meu destino final, achei um lixo improvisado numa caixa de papelão que um vendedor de água de coco colocou ao lado de sua barraca. Nas horas seguintes, fiquei pensando na experiência como um todo. E constatei que é complicado, para não dizer impossível, mudar os hábitos de uma população que produz cada vez mais lixo e que o número de lixeiras não acompanha o crescimento da papelada, das embalagens e porcarias que geramos.
As lixeiras de Salvador quando não estão destruídas, estão entupidas até a boca e com muito lixo espalhado ao seu redor. O próprio poder público não tem o devido cuidado e não oferece a estrutura necessária para nos estimular a despejar os nossos restos no lugar certo. Do mesmo modo que o cidadão, as prefeituras também não estão conseguindo dar o destino correto ao lixo recolhido nas ruas. Em 2010, foi criada a Política Nacional de Resíduos Sólidos para que acabássemos com os famosos “lixões” a céu aberto que temos espalhados pelo Brasil. Esta lei estabeleceu o prazo de 4 anos para a extinção dos “lixões” em todo o território nacional. QUATRO ANOS! O prazo terminou no último sábado (02 de agosto). Mais de 60% dos municípios brasileiros sequer cumpriram a lei. São mais de 78 mil toneladas de lixo por dia indo para o lugar errado.
E eu que sempre pensei que a expressão “Joga Fora no Lixo”, daquela animada canção eternizada na voz potente de Sandra de Sá, era uma redundância sem sentido, uma burrice imperdoável, estou começando a reconsiderar minha posição. O senhor que arremessou aquela latinha na minha direção, por exemplo, só captou as duas primeiras palavras do refrão. E enquanto eu compro briga e aceito carregar o lixo alheio ao caminhar por Salvador, enquanto as lixeiras são depredadas, enquanto Sandra de Sá não ficar rouca, eu torço para que as boas ideias ou as leis realmente importantes saiam do papel antes que ele seja amassado e arremessado num cesto de lixo.
