UMA REFLEXÃO SOBRE O REFLEXO NA ERA DIGITAL


Assistindo “em tempo real” aos bombardeios em Gaza, acessando a dor de palestinos através de vídeos de celulares feitos pelas próprias vítimas do conflito Israel-Hamas, vídeos amplamente difundidos nas redes sociais, lembrei de uma conferência proferida por Vicente Sánchez-Biosca, na SOCINE 2010, em que tratou do “presentismo” inaugural das imagens produzidas por fotojornalistas durante a Guerra Civil Espanhola e como essas imagens viajaram pelo mundo e condensaram diferentes narrativas ao longo da história, povoando o imaginário de toda uma geração com uma nova e potente “iconografia bélica”.

The Falling Soldier, ou Loyalist Militiaman at the Moment of Death, Cerro Muriano, September 5, 1936., de Robert Capa, é talvez a fotografia mais emblemática da Guerra Civil Espanhola, uma guerra amplamente documentada, talvez a primeira a repercutir em tempo presente nos jornais de todo o Ocidente. Retrata o instante em que o soldado cai morto. O momento em que se jaz. Um verbo que até então não abarcava o gerúndio.






















O ponto de virada para o pesquisador se dá com a queda da figura do herói e a ascensão da figura da vítima, “devido à sua força emocional, ao seu patetismo e à sua capacidade para condensar tramas narrativas”.

Efetivamente ouvimos o testemunho das vítimas? Ou, impactados por essas imagens, deixamo-nos guiar pelos jornais até o fim do leading e só?  “Menino de Costa Barros” (Luiz Felipe), de três anos, morto em tiroteiro. “Mulher arrastada” (Claudia Silva Ferreira) por viatura da PM. E “Dançarino do Esquenta” (Douglas Rafael da Silva Pereira) encontrado morto.






















A iconografia bélica da Guerra Civil Espanhola, da qual trata Sánchez-Biosca, remete a uma “persistência dessas imagens (das vítimas das batalhas) e sua pervivência (sic) na memória”.

Ao mesmo tempo em que, na atualidade, o testemunho serve como importante recurso para uma compreensão mais completa e cabal de nossa época, o “discurso vitimista” é massivamente explorado pelos meios de comunicação, sem a devida reflexão sobre como as imagens se transformam e se reescrevem, sobre o porquê de nos referirmos a elas (e em que medida), e sobre como a captação e transmissão visual das imagens das vítimas contribuem para o próprio imaginário de conflito.

Guerra: ontem e hoje. O bombardeio noturno da Guerra do Golfo nos anos 90. E prédio antes e depois de bombardeio em Gaza, 2014. Montagem realizada a partir de frames do vídeo que circulou no Facebook.






















Ademais, hoje o suporte para a difusão das imagens já não é o jornal impresso. A imagem pode oferecer movimento. E a revolução digital e do usuário na prática é sentida por um conteúdo que promove “acesso privilegiado”. A guerra já não é retratada como fenômeno distante. (Lembram-se da imagem de “chuva incandescente” na cobertura televisiva da Guerra do Golfo?).

A profusão de imagens vitimistas é tanta, estamos todos tão viciados e de olho na tela, que o “Tratamento Ludovico”, a terapia “pavloviana” fictícia por que passou o personagem Alex DeLarge de Laranja Mecânica para se recondicionar frente à violência, pode se tornar realidade. Podemos, como reflexo às imagens de dor e sofrimento de vítimas, criar aversão e impotência em vez de empatia e consciência crítica? A ver. Tomara que não.

O Facebook, porém, recentemente serviu de experimento científico. A manipulação do feed de notícias pretendia verificar o “contágio emocional” dos usuários. E segundo os pesquisadores, os resultados provam que sim, “os estados emocionais podem ser transferidos para outros por meio de contágio emocional, levando as pessoas a experimentarem as mesmas emoções de modo inconsciente”.

Devemos ficar, pois, alerta para não nos deixarmos contagiar e manipular assim tão facilmente. A troco de quê? Com qual finalidade? A nossa luta começa pelos olhos.


Cena de A Laranja Mecânica, do diretor Stanley Kubrick, baseado no livro homônimo de Anthony Burgess.




Raquel Valadares é diretora e produtora de audiovisual.