ESTAMOS TODOS NO MESMO MUNDO?


Reparo na complexa conjuntura social neste nosso tempo e só chego a uma conclusão: que caldeirão difícil. Infinitas formas de vida e relações foram legitimadas, e ainda assim quantas DRs, ciúmes, agressividades, sabotagens, antidepressivos, solidões e desesperos. Muitas visões de mundo libertárias e todas em choque violento uma com a outra. Amplo espaço ao trabalho criativo e ainda uma massa de adultos ressentidos por não se sentirem tão reconhecidos no que criam o quanto acham que merecem. Surtos psíquicos encarados como algo normal, cotidiano, natural. Não sei se toda geração pensa em si mesma como o ápice do estranhamento e da gravidade ou se somos filhos da depressão institucionalizada, mas me parece que estamos em crise, contaminados de ironia, ansiedade e pessimismo. Agora eu pergunto: estamos nos esforçando para fazer valer a pena?

Há mais de meio século, Hannah Arendt publicava "Homens em tempos sombrios", uma coleção de ensaios a favor da solidariedade como meta do pensamento, da literatura e da arte. Sob influência das arbitrariedades de regimes políticos radicais da primeira metade do século XX, o livro fala sobre figuras históricas que fizeram de sua presença no mundo uma contribuição à humanidade.

E nós, hoje vivos e contemporâneos, falamos sem embaraço de figuras que representem um esforço humanitário exemplar? Por que é mais comum que a nossa sociedade, em vícios de verborragia e deboche cínico, tome os partidários da solidariedade e do altruísmo como tolos personagens de piada, desvairados, hippies tardios, new age, idealistas, pouco inteligentes, escapistas, superficiais, bonzinhos demais? Por que não nos deixamos convencer pelos otimistas? Por que jogamos fora a visão do copo meio cheio e seguimos chorando pela metade vazia?

Algum problema em discordar da perspectiva dos engajados na busca da felicidade em ações boas, assumidamente otimistas? Claro que não. Algum problema em discordar com cinismo e se amparar na rasa explicação de que esse pessoal é, em suas mensagens às vezes meio autoajuda e em seus sorrisos gratuitos, menos profundo e inteligente do que os pessimistas? Sim, porque aí está presente um tom de “eu sei mais que você”, “eu tenho mais discernimento”, “minha tristeza é mais inteligente” – tom baseado numa noção antiquada de superioridade sem critério, como se aceitássemos o clichê raso de acordo com o qual as pessoas muito inteligentes são necessariamente pessimistas ou tristes. E uma pessoa inteligente não pode escolher o esforço de focar no melhor? Afinal, não há critério para dizer que uma vida é mais real do que outra. Ou há? Não estamos todos no mesmo mundo?

A violência e o tempo sombrio a que Hannah Arendt faz referência em seu livro são outros. Mas e agora, como estamos lidando com a agressividade e o cinismo? Estamos cultivando aquela solidariedade com que os textos de Hannah Arendt eram impregnados ou já deixamos esse valor ser engolido pelo riso triste de quem escapa das dificuldades pela ironia ressentida?

Precisamos tomar cuidado para que, nesse redemoinho sempre em desenvolvimento que é a civilização, nada nos choque e leve embora a nossa chance de passar pela vida com alguma alegria e fazer dela algo benéfico. E isso necessariamente passa pela consideração ao outro e pela decisão entre seguir lamentando ou se esforçar na busca do melhor.

Para finalizar, gostaria de compartilhar alguns questionamentos possíveis, caso estejamos dispostos a abrir clareiras:

A convivência humana tem piorado a si mesma ou essa é uma conclusão feita sem distanciamento? Crises são requisitos para novos saltos evolutivos dentro de uma mesma espécie? É importante, para que a humanidade se mantenha viável, continuar esse jogo quase esquizofrênico entre individualidade e coletividade, entre diplomacia e egoísmo? Será que, em breve, vamos desistir da lógica exaustiva da negociação e, juntos, abandonaremos o esforço da convivência e viraremos animais selvagens de egoísmo violento? Ou manteremos a convivência humana em níveis amargos sim, mas tão mais amargos somente quanto mais desenvolvermos nossa capacidade de suportar a amargura, de modo a nos adaptarmos ao nosso próprio veneno? Se há algum caminho remotamente promissor aí, encontrar esse caminho não deveria ser a nossa meta mais urgente? É possível aceitar que a batalha entre o conservadorismo cego e a autocrítica que protesta nas ruas é natural, vindoura ou qualquer coisa assim, e que podemos pensar num mundo melhor sem que isto soe vazio, inocente e impossível? Prefiro crer que sim.


Thiago Barbalho é escritor. Publicou os livros "Thiago Barbalho vai para o fundo do poço" (Edith, 2011) e "Doritos" (Vira-Lata, 2013).