
Este texto é um texto furado. Não se pretende inteiro e é feito de puro achismo.
Tem amor, morte, vida e fracassos.
A morte que nos circunda, ininterruptamente, fica, às vezes, um pouco mais destacada para alguns. Para aqueles com doenças crônicas e os do CTI. Para os que vivem em zonas de guerra, ela, talvez, possa até passar um pouco amenizada.
Como será que ela se apresentava para os prisioneiros dos campos de extermínio? Sublinhada de neon?
A morte como experiência radical, real, traumática, sem símbolo é a que tudo permeia, do início ao fim. É também aquilo que, quem sabe, pode aliviar os pesos dos acontecimentos mundanos.
Ela é a melhor mediadora para certa libertação dos fatos fracassados do dia a dia. Pois, se tudo é cortado pela morte, as coisas perdem seus gigantescos significados. Talvez até os fracassos mais potentes se aliviem perante sua força e sua regra.
Claro que não é fácil tê-la assim, tão desmascarada.
Mas isso não é um tipo de "o que é seu tá guardado" ou "se não foi é porque não era para ser". Nem é uma resignação vencida.
Isso é poder dar descarga no passado, seguir em frente (em direção ao que mesmo?). É reconhecer o poder do limite. Da castração como verdade. Um ser humano, como corpo, como traço, fronteira, borda, não voa. E não há forma de abandonar o corpo. Como já dizia minha querida Clarice, o corpo é o único que te acompanha até o fim. Ela disse algo assim.
O morto de uma família cria novos adjetivos para os que ficam.
A maioria vira órfão. O olhar perdido de um filho no enterro, que não sabe para onde ir.
Um casal é feito de dois. Mesmo que dois não façam um, existe um enlace.
Esse laço é vivido no cotidiano, na rotina, no padrão. No amor.
Quando um dos lados morre, o que ficou vivo ou viva recebe uma letra como marca da perda.
A letra “u”.
Cravada no meio dessa qualidade, esse estado vira outro ou um ganho na falta.
A letra acrescentada vem marcar o sumiço radical: viúvo/viúva.
Então, o lado já não tem a parceria do outro lado. Não há mais esse laço.
E o lado retorna a ser um, mesmo que o sujeito seja dividido. Em pelo menos dois.
Já na grávida há vida. Há gravidade. Não essa que nos prende ao solo. Mas a do que é grave, robusto, perturbador.
Colocar uma vida no mundo é, também, uma das experiências mais radicais. É sentenciar alguém a viver na perda diária, no contato com a finitude, com as mazelas do planeta. É algo sempre com um cunho egoísta. Escuta-se fácil sobre o amor que o pai e a mãe sentem, sobre a mudança que ocorreu em suas vidas, sobre todos os gozos de se ter um filho. Alienados em sua prole com ilusória sensação de completude. Experiência essa que custa uma vida; a de um outro. “Eu me tornei uma pessoa melhor”, “ minha existência ganhou sentido” e por aí vai.
Parir é um tipo de suicídio. É abrir mão de uma vida que nunca mais se terá. A esmagadora maioria não abandona seus filhos, é claro, e envereda pela dinâmica que essa condição impõe. Morre-se para, quem sabe, renascer. Mas esta não é uma visão bem-vinda. Pois gerar é como uma obrigação, e muitas, muitas mulheres caem no discurso biológico e social do “chamado da natureza”, como se não tivessem escolha diante da enxurrada de hormônios que toma conta de seus corpos. Ato simplista que reduz o homem ao natural (discurso que me leva a pensar nas restrições impostas, desde sempre, ao corpo da mulher _ mas esse é assunto para outra escrita).
Adentrar a maternidade e a paternidade parece que perdoa, abole e purifica os que estão nessa relação.
Desde que ouvi uma entrevista, há milênios, do Ney Latorraca para o Jô Soares, em que ele dizia que não tinha direito de trazer uma vida ao mundo, parece que vesti tal posição.
Já fui bem mais endurecido com minha opinião e olhei torto e com desconfiança para os que, apenas, com um gesto fácil, colocavam mais humanos no globo.
A melhor definição é que ter filhos é ter corações fora do peito. Como suportar a angústia de ter esses corações andando por aí? O sujeito fica ainda mais repartido. Ele passa a ser um outro e a se autodenominar usando a terceira pessoa. “Vem com a mamãe”; “papai já vai”. E ainda chama sua irmã de tia e se refere ao próprio pai como vovô.
E mais uma vez, minha querida Clarice já dizia:
“Eu posso ter filhos e nada sei”. Ou algo assim.
Mas tem lado bom?
Minha visão tende a ir para o trágico e, diante de tanta perturbação, não acho que a passagem pela vida seja um acontecimento maravilhoso, bendito, fundamental, ao qual devamos agradecer.
O sujeito é sempre jogado no mundo e tem que descobrir o seu jeito de fazer isso aqui ser, pelo menos, bom.
O que pode salvar é o bom humor (e amor, claro! muito amor!). Não acreditar em qualquer ideal de felicidade. Ou mais, não acreditar em nenhum ideal. Viver com aquilo que é; com o que é possível.
Viajar lá para cima, ir até o espaço sideral e olhar a Terra, ver como tudo é tão fabricado e rotulado. Que as fronteiras não existem, que países não existem.
Mas parece que a coisa está muito crua e pouquíssimo adocicada, como se faltasse uma quarta camada de cor. Ou, ninguém aguenta ficar sem doçura, como se tudo tivesse que ser, sempre, maravilhoso.
Não é à toa que uma forte característica de nossos tempos é tomar um remédio para tentar domar a gangorra da vida. Aparentemente, nos tornamos intolerantes com o que não dá certo, com o sofrimento, com o limite. Já não podemos suportar.
O remédio tenta calar esse mal-estar constante que nos acompanha. A tristeza, os déficits e síndromes, as humanidades, a falha, a falta. A morte.
Em vez de tentar superar o furo, contorná-lo e assim criar algo; inventar.
E, para ficar um pouco mais leve, nunca parar de duvidar e manter um constante não saber, porque certeza demais é loucura certa.
Josef Chasilew é maquiador e cabeleireiro.