No sexto episódio da quarta temporada do seriado Girls, a nova namorada de Adam, Mimi Rose, o informa que fez um aborto. A cena dá um susto até em feministas que, como eu, defendem a descriminalização do aborto desde os 12 anos de idade. O meu choque obviamente não veio do ato em si, mas do modo como Mimi Rose conta isso ao seu namorado. Ela simplesmente informa que não pode ir correr com ele porque fez um aborto no dia anterior.
Ninguém espera ver essa frase em uma série. No momento em que ela surge pensamos em muitas coisas: “O quê? Como assim?” , “Quem faz um aborto e fica tão calma?” e, claro, “Como ela conta pro namorado desse jeito?”. Adam reage exatamente de acordo com essas três dúvidas, mas sua incompreensão rapidamente se transforma em raiva. Não é que ele necessariamente queira ser pai, sua indignação tem mais relação com o quanto ele é dispensável para sua namorada, porque em nenhum momento ela pede sua opinião ou ajuda. No final do episódio, quando os dois se reconciliam, Mimi Rose explica que realmente não precisa dele, mas que isso não significa que não queira estar com ele — um momento que parece ser a descoberta de um novo mundo nessa série em que quase todos os relacionamentos possuem dinâmicas abusivas.
Com essa cena, Girls, uma série que comete tantos equívocos, fez algo brilhante e muito útil. É desconcertante ver um mulher falando sobre seu aborto de modo decidido, calmo e sem pedir permissão ao seu namorado ou a qualquer pessoa. Não porque essa postura seja algo incomum ou inaceitável, mas não é isso que estamos acostumados a ver na TV. O fato da maioria das obras não passarem no teste de bechdel explica perfeitamente ao que nós, mulheres, supostamente ainda servimos: O eixo de nossa existência ainda são os homens. A mídia — e não só a má publicidade, mas até as obras consideradas de alta qualidade por alguns, como o filme indicado ao Oscar, Boyhood — colocam a mulher em uma posição que não possui vontade própria.
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Mimi-Rose (Gillian Jacobs) em Girls. |
Com essa cena, Girls, uma série que comete tantos equívocos, fez algo brilhante e muito útil. É desconcertante ver um mulher falando sobre seu aborto de modo decidido, calmo e sem pedir permissão ao seu namorado ou a qualquer pessoa. Não porque essa postura seja algo incomum ou inaceitável, mas não é isso que estamos acostumados a ver na TV. O fato da maioria das obras não passarem no teste de bechdel explica perfeitamente ao que nós, mulheres, supostamente ainda servimos: O eixo de nossa existência ainda são os homens. A mídia — e não só a má publicidade, mas até as obras consideradas de alta qualidade por alguns, como o filme indicado ao Oscar, Boyhood — colocam a mulher em uma posição que não possui vontade própria.
Quando o assunto é gravidez, as coisas ficam ainda mais terríveis. Mulheres grávidas são seres imprevisíveis, dominadas por desejos bizarros, ainda mais emotivas e instáveis do que a “mulher normal”. Não existe uma cena de parto em que uma mulher não sofra terrivelmente (e por isso agradeço ao reality show Keeping up with the Kardashian pelo lindo momento em que Kourtney Kardashian puxa sozinha seu primeiro filho de sua barriga sem dar um único grito de dor). Gravidez indesejada é um tema limitado às personagens adolescentes ou desvirtuadas. É improvável que uma mulher adulta e com estabilidade financeira escolha não ser mãe. Segundo Hollywoood, o destino de uma mulher feliz é uma agenda cheia e um lar a sua espera. É cada vez mais recorrente filmes sobre mulheres bem sucedidas profissionalmente que precisam se desdobrar para dar conta de tudo, ou seja, para serem também uma boa esposa e mãe. O que essas tramas dizem de modo não tão sutil é que até podemos ocupar posições de poder, mas não seremos um exemplo de sucesso (ou o mais cruel, de felicidade) enquanto não formos escolhidas para ser a progenitora de um lar.
Seguindo essa lógica, é algo surreal que uma mulher possa escolher não ser mãe e lidar com isso sem se desesperar. A calma de Mimi Rose é chocante, porque ninguém nunca nos disse que um aborto pode não ser um evento trágico. O aborto é um tema tabu de tal modo que até quem apoia sua legalização pode cair em moralismos em sua defesa. Frases como “Sou a favor da descriminalização do aborto com as suas devidas regras” ou “Sou contra a criminalização, mas é um tema delicado que precisa ser discutido, não pode ser banalizado” foram muito comuns nas últimas semanas quando um desafio cretino foi lançado no Facebook. Obviamente, não faltou a opinião daqueles que nunca entenderam na pele o risco de uma gravidez indesejada. Os homens continuam muito preocupados com o direito à paternidade, enquanto nós precisamos lutar para nos desvencilhar de um suposto dever. Mas, em geral, homens e mulheres querem dar uma opinião pessoal sobre algo que não os diz respeito. A mulher grávida parece ser o corpo mais desapropriado de voz que existe. De acordo com o tribunal das redes sociais, ela não pode fazer uma decisão sozinha e, se fizer, deve carregar uma responsabilidade, ou seria a culpa? A verdade é que a sociedade pode estar disposta a conceder direitos às mulheres, mas nunca a liberdade de escolha. A defesa ressabida do aborto demonstra um medo da banalização do tema, o que é sempre justificado com (insira um tom de nobreza humanista) a preocupação com a vida, mas sabemos bem que se trata de impor limites. Afinal, como será esse mundo em que as mulheres podem decidir sobre seus corpos sem nem se sentirem um pouco mal por isso?
Mimi-rose fez uma escolha sozinha e lidou com ela sem culpa. Ela sabe, nas suas próprias palavras, que um punhado de células não pode decidir todo seu destino. Girls contribui para que mais mulheres saibam disso.
PS: Não tenho propriedade para falar pelas mulheres que fizeram abortos. Com esse texto não quero desrespeitar o modo como algumas mulheres viveram isso, a questão não é apontar a maneira certa de se comportar, mas nos dar outras possibilidades e, principalmente, reafirmar que a escolha é nossa do início ao fim. Além disso, é muito importante ressaltar que no Brasil a descriminalização do aborto vai muito além da garantia de um direito. Mulheres abortam todos os dias. Aquelas que são de classe média ou alta pagam caro por isso, enquanto as mulheres pobres correm o risco de pagar com suas próprias vidas. É preciso legalizar o aborto para garantir que mais nenhuma mulher morra ou seja presa por fazer essa escolha.
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Mimi-Rose (Gillian Jacobs) e seu namorado Adam (Adam Driver) |
Seguindo essa lógica, é algo surreal que uma mulher possa escolher não ser mãe e lidar com isso sem se desesperar. A calma de Mimi Rose é chocante, porque ninguém nunca nos disse que um aborto pode não ser um evento trágico. O aborto é um tema tabu de tal modo que até quem apoia sua legalização pode cair em moralismos em sua defesa. Frases como “Sou a favor da descriminalização do aborto com as suas devidas regras” ou “Sou contra a criminalização, mas é um tema delicado que precisa ser discutido, não pode ser banalizado” foram muito comuns nas últimas semanas quando um desafio cretino foi lançado no Facebook. Obviamente, não faltou a opinião daqueles que nunca entenderam na pele o risco de uma gravidez indesejada. Os homens continuam muito preocupados com o direito à paternidade, enquanto nós precisamos lutar para nos desvencilhar de um suposto dever. Mas, em geral, homens e mulheres querem dar uma opinião pessoal sobre algo que não os diz respeito. A mulher grávida parece ser o corpo mais desapropriado de voz que existe. De acordo com o tribunal das redes sociais, ela não pode fazer uma decisão sozinha e, se fizer, deve carregar uma responsabilidade, ou seria a culpa? A verdade é que a sociedade pode estar disposta a conceder direitos às mulheres, mas nunca a liberdade de escolha. A defesa ressabida do aborto demonstra um medo da banalização do tema, o que é sempre justificado com (insira um tom de nobreza humanista) a preocupação com a vida, mas sabemos bem que se trata de impor limites. Afinal, como será esse mundo em que as mulheres podem decidir sobre seus corpos sem nem se sentirem um pouco mal por isso?
Mimi-rose fez uma escolha sozinha e lidou com ela sem culpa. Ela sabe, nas suas próprias palavras, que um punhado de células não pode decidir todo seu destino. Girls contribui para que mais mulheres saibam disso.
PS: Não tenho propriedade para falar pelas mulheres que fizeram abortos. Com esse texto não quero desrespeitar o modo como algumas mulheres viveram isso, a questão não é apontar a maneira certa de se comportar, mas nos dar outras possibilidades e, principalmente, reafirmar que a escolha é nossa do início ao fim. Além disso, é muito importante ressaltar que no Brasil a descriminalização do aborto vai muito além da garantia de um direito. Mulheres abortam todos os dias. Aquelas que são de classe média ou alta pagam caro por isso, enquanto as mulheres pobres correm o risco de pagar com suas próprias vidas. É preciso legalizar o aborto para garantir que mais nenhuma mulher morra ou seja presa por fazer essa escolha.
Taís Bravo está no mestrado em filosofia na UFF.