PRECISAMOS FALAR SOBRE MACHISMO

Li esses dias um texto da Camila Moraes, publicado no site operamundi, que se conclui com a seguinte frase: “o machismo é um mal que se aprende. Por cores, brincadeiras e risadas”.

Estamos em 2015, na semana em que se celebra o Dia Internacional da Mulher e, não só por este motivo, mas independente do tempo ou do lugar em que vivemos, é fato que nós ainda precisamos falar sobre machismo. Todos nós. Mas quero falar aqui especialmente para nós, homens, filhos, irmãos, netos, pais, maridos, primos e amigos de mulheres. Precisamos fazer um esforço diário para emergir e respirar acima desse mar agressivo e revolto no qual estamos cotidianamente mergulhados e que, muitas vezes, consegue – por sua dimensão turbulenta – disfarçar ou pormenorizar máculas e cicatrizes que ações de cunho machista deixam em todos nós. Principalmente nas mulheres, é claro. Mas não só nelas. Em mim. Em você.

Enquanto ainda presenciarmos homens, em qualquer local público, se comportando como se estivessem dentro de um açougue. Enquanto for necessário que existam vagões exclusivos para mulheres no metrô das grandes cidades para evitar que possíveis “abusos” aconteçam. Enquanto uma mulher não tiver a tranquilidade de escolher a roupa que quiser para sair na rua sem ter que se preocupar se será assediada ou não por isso. Enquanto pensarmos que só um irmão é capaz de defender uma irmã e que o contrário não é possível. Enquanto acharmos que chorar é coisa de mulher ou que futebol é coisa de homem, azul para ele, rosa para ela, nós precisaremos falar sobre o machismo.

Enquanto jovens forem abusadas em trotes que propõem jogos e “brincadeiras” fundados em comportamentos violentos e desrespeitosos, como os casos comprovados que se repetem anualmente em instituições de ensino respeitadas como a faculdade de medicina da USP. Enquanto uma jornalista brasileira for gravemente ameaçada e receber pelo correio dezenas de pacotes contendo brinquedos eróticos, esterco, vermes de mosca, livros para emagrecer, apenas porque exerceu seu direito de se expressar e escreveu um artigo abordando o machismo no universo Nerd. E, por este motivo, seus agressores prometerem que só parariam com as ameaças depois que ela cometesse suicídio. Como não falar de machismo diante disto?

Enquanto as nossas adolescentes continuarem a cometer suicídio como forma de aplacar a dor e o desespero de ver a sua vida íntima completamente devassada através de fotos e vídeos, e os homens responsáveis por vazar esse conteúdo na web permanecerem impunes. Enquanto tivermos parlamentares como o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) que, por mais de uma vez insulta sua colega, a deputada Maria do Rosário (PT-RS), com dizeres como“não te estupro porque você não merece”, sem temer processos e amparado na certeza que nada lhe acontecerá. Enquanto a imprensa brasileira continuar a produzir “reportagens” calculando o quanto gasta de maquiagem a presidenta Dilma Rousseff, ou analisando seu penteado e sua vestimenta, se está certo ou errado, se combina ou se não combina, como isso tivesse realmente alguma relevância para o ambiente político ou para os rumos do nosso país, é um dever nosso conversar sobre machismo.

Enquanto mais da metade de nós brasileiros continuarmos a conhecer ao menos uma mulher que foi vítima de violência doméstica. Enquanto uma mulher for estuprada a cada 12 segundos neste país. Enquanto piadas irresponsáveis de figuras como Rafinha Bastos e Danilo Gentili continuarem sendo contadas sem melindres ou constrangimentos, em troca de aplausos e risos fáceis, colaborando e reforçando a ideia da mulher como objeto, é fundamental que falemos sobre machismo.





É então que chego ao recente episódio que colocou novamente o machismo no centro da discussão. Trata-se de um vídeo de uma entrevista concedida em maio de 2014 pelo ex-ator Alexandre Frota ao programa "Agora é Tarde" (TV Bandeirantes). Quase um ano depois este material reverberou com muita força nas redes sociais e provocou reações não só do movimento feminista, mas de vários outros setores da sociedade civil. Nele, Frota é entrevistado justamente por Rafinha Bastos, e consegue a proeza de arrancar risos e aplausos do público ao narrar que fez sexo a força com uma mãe de santo durante uma suposta visita a um terreiro de candomblé. Mesmo que não se trate de um episódio verdadeiro, além do machismo evidente no tom do discurso, em que ele incita clara e abertamente o estupro em rede nacional, Alexandre Frota ainda consegue demonstrar total ignorância e preconceito contra as religiões de matriz africana, ao usar uma série de rótulos rasos sobre o que é e o que faz uma mãe de santo.

É importante esclarecer que o que está em jogo aqui não é se o causo narrado por ele é real ou fictício. Não cabe, portanto, a defesa que Rafinha Bastos fez no seu perfil do twitter, ao dizer que “Aquilo nunca aconteceu. Se tivesse acontecido, ele estava na cadeia. Foi uma história inventada”. Ora, mesmo que não seja verdade, que não tenha havido a consumação do ato, ou uma confissão, o simples fato dele fantasiar um caso desta natureza e dizer isso – mesmo que em forma de piada – num programa televisivo de longo alcance, é mais do que um ato de irresponsabilidade. Se não dá para chamá-lo de "estuprador", e não dá mesmo, ao menos podemos afirmar que houve clara apologia ao estupro e evidente banalização da violência contra mulher. A gravidade do fato é indiscutível e ele, o programa e a emissora não podem ficar impunes. Precisam responder por isso.

Li artigos na web que se mostraram mais preocupados em definir o exagero e a radicalidade do tsunami de comentários de reprovação na internet, do que propriamente em discutir como atitudes machistas ainda são aceitas tão naturalmente na nossa sociedade, se reproduzindo das rodas de conversa de dentro de casa aos programas televisivos. A comparação mais infeliz, na minha opinião, foi a do músico e produtor Emir Ruivo, no blog Diário do Centro do Mundo, que usa a expressão "apedrejamento medieval" para se referir ao que ele chama de "histeria coletiva" no Facebook como reação ao episódio. Para ele, Frota não pode ser chamado de "estuprador", pois não passa de um molecão, bobo, misógino. Ora, se dá para dizer que ele é menos que um "estuprador", dá também para afirmar que ele é mais que um "molecão" de 50 anos.

O fato do vídeo ter se tornado um “viral” e, por conta disto, ter desencadeado um "massacre virtual", com certos exageros, é bem verdade, não o torna uma vítima e não o exime da responsabilidade do que declarou. A onda de reações, mesmo que carregada de certos excessos, é importante para ao menos sensibilizar o poder público, através do Ministério Público e de outros órgãos que tem o dever de analisar o caso e que podem (e devem), de fato, punir os envolvidos. Neste caso, especificamente, responsabilizar Alexandre Frota, o programa "Agora é Tarde" e a TV Bandeirantes. Enquanto não dermos um passo adiante, enquanto imperar a sensação de que "nada vai acontecer", enquanto os veículos de comunicação não agirem de forma responsável, enquanto atitudes machistas, racistas e homofóbicas forem motivo de piadas, enquanto houver audiência para programas como esse, enquanto houver aplausos para figuras como Alexandre Frota, não poderemos nos calar e será necessário falarmos sobre machismo.

Há muito mais em jogo nessa discussão toda, mas para não me alongar ainda mais... Evoco aqui a figura genial de Laerte, cartunista brasileiro que – a partir de 2010 – passou a se vestir de mulher, se posicionando para além das definições de gênero. Ao ser entrevistado por uma turma de jornalistas no programa Roda Viva (TV Cultura), em certo momento ele disparou: “Existiu a tal da revolução feminina, que é um dos marcos da humanidade. O que não aconteceu é a revolução masculina”. Diante disto, embora a realidade esteja nos mostrando mais sinais negativos do que avanços, eu procuro fazer a minha parte no convívio com homens e mulheres e sigo torcendo para que consigamos construir – com todo sacrifício que isto exigir de nós – uma sociedade com menos Frotas e mais Laertes.


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GABRIEL CAMÕES
Ator, poeta, jornalista e colunista do ORNITORRINCO


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