POSSÍVEL CARNAVAL FORA DE ÉPOCA



No início desse ano fui polêmica, disse que estava cansada do carnaval. Saiu no jornal. Uns curtiram, outros postaram em seus perfis "eu fico achando que é pessoal alguém dizer que não gosta do carnaval".

Não é pessoal, é grupal. Explico. Sei dos dementes, sei dos situacionistas, sei de quem se vale dos dias para se reinventar, para se testar, para se alucinar. Mas também sei da massa, dos que descobrem uma música de um cantor e só ouvem essa para o resto da vida, sem curiosidade além. Sei dos comuns, sei dos que combinam de irem com a mesma fantasia, não pela graça em ser semelhante, mas pelo medo em ser diferente.

Já trabalhei no carnaval. Já cantei em bloco, e como não canto de olhos fechados, já vi de tudo, já vi meninas me xingando, já vi homem falando baixaria, já vi olhinhos brilhando, pedidos de música. Carnaval é porrada. Aguentei uns anos, animeis umas festas, me diverti, mas como boa situacionista, não acho que aquilo é o momento auge da minha vida, como alguns acham.

Estou me mudando, já disse, e vou mais fundo: é tão chato se mudar, tão chato, que outro dia achei uma peruca num dos armários, e resolvi colocar. É abril, mas não obedeço à ordem universal que só podemos sair na rua com peruca em pleno carnaval. Pois, coloquei a peruca para me divertir durante a mudança. Precisei comprar mais fita crepe, e ora bolas, por que não ir na papelaria com peruca? Estou tão linda assim, de peruca de cabelo branco. Fui. Olhares de horror, um ou outro de graça, seguido de um comentário de "é coisa de teatro?". Crianças amam, e por isso eu as amo de volta. As mesmas pessoas que ficaram chocadas com o meu comentário de "estou cansada da felicidade do carnaval", teriam sorrido para mim de peruca louca em plena Voluntários da Pátria? Quero acreditar que sim, quero ter fé que sim. Don't let me down.

Outro exemplo. Eu estava na Gávea, encalacros do Detran, quando percebi a hora e olhei a rua Jardim Botânico, pensei o quão demoníaco seria estar dentro de um ônibus parado, e resolvi com muita naturalidade ir andando até o Humaitá. Estava com meu ipod – milagre pois não costumo muito sair com ele. E assim fui andando pela rua, cantando aos berros, dançando em frente ao Jardim Botânico, pensando no Tom Jobim, pensando nas palmeiras, pensando nos sapos, e veio tudo no meu ouvido, veio Led Zeppelin, veio Nação Zumbi, veio Carole King, veio Romulo Froés, eu mesma vim ao meu ouvido, e fui amarradona, cantando para o mundo, enquanto os carros completamente parados, com apenas um indivíduo dentro de cada veículo, todos me olhavam como se eu fosse a louca de branco de Ipanema. Depois do Jardim Botânico, o parque, quando já começa a ter supermercado, drogarias, bares etc, não me intimidei, e aquilo ali, meus amores, era meu carnaval, e só não tirei a blusa porque não tenho faculdade completa e não quero ser presa, mas estava um calor do cacete, e eu devia estar de top pra poder tirar a blusa, porque afinal top e biquini podem, mas sutiã não pode. Bocejos, grande civilização, quantos bocejos te ofereço.

As pessoas me olhavam incrédulas: "moça tão alta, magra, cara de elegante, mas tão troncha assim, dançando sozinha, cantando mais alto que as buzinas imbecis". Sorri para alguns, e desarmei alguns. Outros aumentavam o olhar de ódio e a cabecinha de um lado para o outro, em negação. Quando estava em frente ao Parque Lage, me animei mais ainda, é possível sentir, em meio à poluição dos carros, que o ar ali melhora. Cantei mais alto, ouvi Baião de Princesas, músicas religiosas e folclóricas lá do Maranhão, senhores. Coisa fina. Quase chorei, quase liguei pra todo mundo que eu amo. Era meu carnaval. Não era fevereiro, não eram os dias estipulados, mas era meu carnaval.

É lindo ver gente fantasiada, não desgosto do carnaval do calendário gregoriano, apenas cansei da estipulação engavetada que o Rio de Janeiro se rendeu. Mas aos amigos situacionistas e que não precisam de carnaval como desculpa, eu recomendo ir à papelaria de peruca. E cantar mais alto que as buzinas. A pé, claro. Perdi 1kg andando e dançando. Fiquei rouca, fiquei doida. O que é um calendário?


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LETÍCIA NOVAES
Cantora, compositora e colunista do ORNITORRINCO