PARA QUEM FICOU PARADO NO TEMPO


Entendo porque obras como o filme Boyhood e as autobiografias ficcionais do escritor Karl Ove Knausgård fazem tanto sucesso com o público adulto. Elas traçam um panorama da infância e da adolescência e mostram como o ser humano se constitui – assim também como reflexo da sociedade em que vive. Tornar-se adulto é um rito de passagem doloroso porque a perspectiva da infância parte sempre do olhar afetuoso dos pais. Na adolescência, precisamos da aprovação dos outros colegas para nos sentirmos parte integrante de um grupo. Ser adulto é ter autonomia para escolher ser quem queremos ser, encontrarmos nossa turma – aquela que fala a nossa língua – e assumir responsabilidades pelos nossos atos.

Para se tornar efetivamente adulto, todos deveriam sair por um tempo da casa dos pais e morar em uma cidade verdadeiramente grande ou até mesmo no exterior. Falo isso não por exibicionismo, mas porque a metrópole ou outra cultura qualquer nos ajuda a termos a real dimensão de quem somos: partícula muito pequena num universo real que não gira ao nosso redor. E por isso mesmo nos proporciona termos a real dimensão da vida, do que ela significa com suas perdas, dificuldades e belezas. Ser ninguém em meio à multidão nos dá a dimensão de grandeza. Não será um sobrenome ou um par de sapatos que lhe tornará melhor por isso. Claro, há exceções, mas não falo delas aqui. “Mundo, vasto mundo”, escreveu Carlos Drumond de Andrade.

Ter a real noção de nossa identidade é importante porque como na adolescência sempre terá aquele grupo pentelho que pratica bullying com os “mais fracos”. Aqui não estou dramatizando. No El País saiu uma reportagem sobre Monica Lewinsky e a cultura da humilhação. Não sei se lembra, mas ela era a estagiária pega em “flagrante” com Bill Clinton nos anos de 1990, quando ele era o Presidente dos EUA. Seu caso foi exposto ao redor do mundo, preencheu páginas de jornais, provocou sua expulsão da Casa Branca e o apedrejamento virtual (era o início daquilo que chamamos hoje de ciberbullying).

Em palestra recente do TED, a ex-secretária da Casa Branca discursa sobre as consequências do assédio virtual e como isso arrasou sua reputação e carreira. Não se sabe ao certo como escolhem vítimas. No revanche porn, geralmente são ex-namorados ou ex-maridos rancorosos. Em casos corriqueiros de humilhação virtual, em que difamação e calúnias são espalhadas sem levar em conta a gravidade do ato e as possíveis consequências para as pessoas, o que está por trás é sempre sadismo em querer o sofrimento da vítima a qualquer preço. Ódio gratuito ou rancor do passado?

Geralmente as vítimas são mais frágeis – na cabeça do agressor – e o agressor acha que conhece bem o funcionamento psíquico “de sua presa”.

A crueldade não pertence ao universo adulto: crianças e adolescentes são altamente cruéis, mas entender a maquinaria do humano, suas pulsões e agressões nos transformam. Ou em pessoas céticas ou em pessoas melhores. Ou nas duas coisas juntas. Se hoje uma notícia falsa ocupa o lugar da verídica na rede e se espalha pelo WhatsApp em velocidade para rirmos de alguém isso significa que não demos conta de lidar com nossos próprios medos e receios pessoais e intransferíveis. Todo mundo tem suas feridas. Quem não as olha de perto, aponta o dedo para longe.

Viver em sociedade talvez seja como se olhar no espelho. Vemos refletir uma imagem, um duplo falseado. Para não enfrentar a fragilidade de uma miragem, acusamos o outro – muita das vezes um desconhecido que nada tem a ver com nossa falha. Falta-nos caráter ou autoestima?

Monica Lewinsky afirma que todos cometem erros aos vinte e quatro anos de idade. Na maturidade, o que nos diferencia de meros jovens arrogantes, quando espalhamos calúnias e difamações pelas redes apenas para chocar? A internet nos torna imaturos? Para a ex-secretária da Casa Branca, a humilhação é uma indústria. E rende dinheiro.

Talvez ainda vivamos dentro de um colégio em que a gincana preferida é atirar a primeira pedra. Talvez ainda sejamos como aquele adolescente que ficou parado no tempo. Para ele, nada mudou. Os mesmos velhos rancores e mágoas. Toda ferida que não se fecha torna-se munição para destruir alguém.


Fernanda Fatureto é poeta e colaboradora do ORNITORRINCO.