A POÉTICA PATÉTICA DAS MANIFESTAÇÕES




Nesse 15 de março de 2015, 200 mil pessoas tomaram as ruas, mais de 1 milhão de pessoas estavam nas ruas, 7 bilhões caminharam pela avenida Paulista. Além dessa guerra de números o noticiário do dia foi tomado por uma ostensiva cobertura das manifestações contra o governo, contra a corrupção e, em muitos casos, a favor da volta da ditadura militar. Assisti boa parte disso através da televisão e da internet, sempre sem som, atento apenas às imagens. Fiquei de olho nos cartazes, nas mensagens. Sua poética patética me deixou desesperançoso.

Sempre que penso em manifestações populares é inevitável voltar ao maio de 68 na França, quando os estudantes ocuparam as ruas de Paris exigindo muita coisa. Além da importância do movimento diante do cenário político francês sempre me chamou a atenção a potência do uso das palavras que marcaram os muros daquele mês. “Ouse pensar, ouse falar, ouse agir”, “L’imagination au povoir”, “É proibido proibir”, “Soyez realiste demandez l’impossible”, e o bonito jogo de palavras criado pelo slogan “rêve générale” que pede um sonho generalizado ao mesmo tempo que combina a sonoridade de rêve (sonho) com grève (que é greve mesmo).

“Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária” disse Maiakóvsky, há quase 100 anos, lá pros lados da União Soviética em ebulição. Se nenhuma manifestação popular de rua foi tão poética quanto o maio de 68, as ruas do Brasil em 2013 foram ocupadas por textos mais bem humorados. As pichações nos muros e as faixas coletivas deram lugar aos cartazes individuais com reivindicações pessoais. O aumento da tarifa do transporte público foi o estopim, mas quando o Movimento Passe Livre (MPL) tomou porrada em São Paulo o “não é só pelos 0, 20 centavos” começou a circular. “Se a tarifa não baixar a cidade vai parar”, “tem tanta coisa errada que não cabe em um cartaz”, “Por uma vida sem catracas”, “Sexo é amor, sacanagem é R$2,95” são alguns exemplos do que se pedia naquele momento. O auge se deu num cartaz em branco que apareceu em Recife, no vídeo o cidadão explica que faltou lápis na escola e não deu pra escrever o cartaz. Arte conceitual presente nas ruas! Mas aí a coisa tomou um rumo estranho, com camisas da seleção fora de época, caras pintadas e hino nacional.

Foi esse clima estranho que senti amplificado ontem. Ver 200 mil ou 1 milhão nas ruas mostrando sua opinião me parece sempre bom, fico muito feliz de viver em um país no qual é possível manifestar-se. Estranho talvez é ver que em 2013 a bala de borracha e o gás lacrimogênio fizeram sucesso e nesse 2015 tudo ocorreu na santa paz de Deus, melhor assim. Mas esse texto não é sobre polícia, é sobre poesia.

Que poesia pobre a que vi nessas mensagens desse março de 2015. “Chega de ditadura de imprensa por decreto”, “Feminicídio sim, fomenicídio não #forapt”, “Intervenção militar constitucional”, “Fora satã comunista”, “Chega de doutrinação marxista, fora Paulo Freire”, “We want military intervention now”, “Reforma política é golpe”, “Fora supremo, Fora Dilma, queremos só ministério público e polícia Federal”. Eu podia continuar detalhando a falta de pensamento poético dessas frases, mas acho que não precisa, você sabe mais de poesia do que eu. Além disso a burrice e o delírio que esses pedidos trazem faz tudo ficar surrealista! Intervenção alienígena já! Nós terráqueos não sabemos governar esse planeta!

A coisa é séria e embora eu concorde que o governo não tem ajudado, cavando sua própria cova, a saída não é por aí. Há muito a ser feito como por exemplo uma política séria sobre legalização das drogas, um papo sobre desmilitarização da polícia, uma caminhada consistente quando o assunto é homofobia e igualdade de gêneros, até uma escalada global e uma luta por um mundo onde todos possamos transitar livremente, sem passaportes, sem fronteiras. A insatisfação é grande, mas o que vi ontem me entristeceu, é o contrário de tudo que acredito. Um grito reacionário, um pedido de linchamento, uma exaltação da época mais tenebrosa que esse país já viveu e tudo isso através de textos mal escritos e sem nenhuma poesia.

Se está difícil concordar com o PT está muito mais difícil concordar com o pessoal que foi pra rua ontem. Espero que a presidenta tenha razão quando diz que uma manifestação contrária ao governo mostra que vivemos numa democracia madura. Que ela, a democracia, não caia de madura e fique de pé. Tem gente que quer ganhar nas armas, na porrada, mas nosso campo de luta é outro.

Todo poder à imaginação, porque pelo menos na poesia tá tranquilo, nós somos mais fortes.


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DOMINGOS GUIMARAENS
Doutor em literatura brasileira, professor da PUC-Rio, integrante do OPAVIVARÁ! e colunista do ORNITORRINCO

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