A melhor história das manifestações que ocorreram neste 15 de março, foi a minha mulher que trouxe para casa. Ao avistar, de dentro do carro, um grupo de “manifestantes” todo trabalhado no verde-e-amarelo, camisas da seleção brasileira, bandeiras, cornetas, apitos e latinhas de cerveja, ela não resistiu e fez para eles a seguinte pergunta: “Quanto foi o jogo?”. Sem baixaria ou ofensas, a turma apenas reagiu com expressões de incompreensão e cara de poucos amigos. O que nos fez concluir que, além de aulas de história e de leituras mais qualificadas, a este grupo que se agarra a ideia do impeachment como o caminho mágico para salvar o Brasil falta também uma coisa muito importante para encarar momentos difíceis: bom-humor.
E se lhes falta bom-humor para levar na esportiva um comentário contrário ou para avistar alguém vestido de vermelho sem rotulá-lo de “comunista” e querer agredi-lo, por outro lado sobra alegria e empolgação para ir a manifestação parecendo que está indo para uma edição da FIFA FAN FEST ou a um jogo de Copa. Num domingo em que a seleção canarinho não entrou em campo, camisas do Brasil de todas as épocas e de todas as Copas entraram em cena e protagonizaram os registros fotográficos dos protestos em todo o país. Aqui em Salvador, o clima era de celebração, agito e curtição. Manifestantes que mais pareciam foliões com roupas que seguiam o mesmo padrão cromático pareciam desfrutar uma manhã de carnaval fora de época, onde sobravam latinhas de cerveja e bandeiras do Brasil. Onde os sorrisos e as selfies superavam, com folga, reivindicações coerentes e argumentos sólidos.
Mas, o que há para se comemorar? Beber, cair e protestar? Não há tensão por conta de presença da polícia em eventos desta natureza? O que há de tão divertido em "combater a corrupção"? E qual o sentido de usar uma camisa com a marca da CBF para gritar “abaixo a corrupção”? Onde está a coerência nisto? Só se estas pessoas considerarem que a corrupção encontra-se “abaixo” do próprio queixo, costurada sobre o peito esquerdo. Ali está um símbolo claro de corrupção. Ao pensar sobre isso, minha mente só é capaz de resgatar a seguinte lembrança recente: 7x1 Alemanha.
O empoeirado e esgarçado argumento, nascido por volta de 1964, de que o "Brasil vai virar Cuba", que já vem se insinuando desde que o PT assumiu o poder, colocou o tornozelo de fora nas manifestações de junho de 2013 e ontem se revelou como um dos preferidos dos manifestantes. Há ainda uma versão mais atual que é o risco de que passemos por um processo de “Venezuelização”. É o tipo de ideia que chega a ser risível. O Brasil não vai virar nem Cuba, nem França, nem China, nem Venezuela e nem EUA.
É no mínimo curioso ver ou ouvir pessoas temerosas de que o Brasil se transforme num país onde nunca pisaram. Morei na Venezuela faz pouco tempo. Mantenho contato com amigos que fiz neste período principalmente através do Facebook. Eles relatam que, de fato, existem muitos problemas na condução do atual governo. Mas o que a imprensa brasileira, e a internacional, nos faz acreditar é bem diferente dos relatos que ouço de amigos venezuelanos. Nenhum deles usa o termo "ditadura" ao falarem de suas rotinas e de suas realidades.
O Brasil é o Brasil. Com todos os erros, falhas, contrastes e desigualdades acumuladas ou intensificadas no percurso de uma democracia que acabou de fazer 30 anos. Com tanto ainda para se amadurecer, vivemos numa nação que permite que pessoas digam as besteiras e os absurdos que quiserem diante do computador, nas varandas ou nas ruas. Não é fácil conciliar tantas diferenças e tantos abusos. Diante deste quadro de tensão, desta crise de representatividade, dos questionamentos cada vez mais contundentes sobre o modo como funciona o nosso sistema político, a presidenta Dilma e seu partido precisam tomar decisões mais efetivas daqui para frente. Caso contrário afastarão cada vez mais aqueles que um dia acreditaram neste projeto e, mais grave ainda, aumentarão o fôlego dos que, desde sempre, lutam do outro lado da disputa no campo político.
Relutei bastante em ligar a televisão durante o domingo de manifestações. Ao chegar em casa da rua, priorizei as redes sociais e os portais de notícias. Ligar a televisão aos domingos nunca é uma boa ideia. Mas fiquei curioso para confirmar o modo como a chamada "grande mídia", em especial a TV Globo, se debruçaria com tanto afinco a esta pauta. Não que isto seja proibido ou inaceitável. Mas porque será que a Globo não adota a mesma postura na cobertura de temas fundamentais como o extermínio da juventude negra nas periferias, o genocídio das populações indígenas, crimes de homofobia e machismo, descriminalização das drogas, só para ficar nos mais evidentes? Não satisfeitos em nos bombardear com os incontáveis flashes ao vivo, eles ainda encaixaram a pauta das manifestações nos momentos mais óbvios da grade como em todos os seus telejornais, no Fantástico e forçaram a barra ao introduzir o assunto nas edições do Esporte Espetacular e até do Faustão.
Ao desligar a telinha e correr para a internet a fim de acompanhar o comportamento festivo nas ruas neste 15 de março, o bate-panela nas varandas de prédios (em sua maior parte de bairros nobres das principais cidades do país) e os impropérios disparados contra a presidenta Dilma nas redes sociais, me vi obrigado a encarar a seguinte reflexão: a chamada “direita envergonhada” não só perdeu a vergonha, como ainda resolveu levar sua ignorância para passear. E o mais importante: as manifestações ganharam peso e corpo com a presença de outros setores da sociedade, deixando de ter presença exclusiva da chamada "Elite Branca" ou mais vulgarmente apelidados de "Coxinhas". Mais do que essa iguaria com recheio de frango, a "vitrine" que se tornou as avenidas de dezenas de cidades brasileiras, exibia "salgados" de todos os tipos e de todas as cores.
O que mais me deixa estarrecido, no entanto, é que mesmo os manifestantes mais moderados, que reconheceram diante da imprensa não haver qualquer fato gerador ou base jurídica para sustentar a ideia de impeachment, não se incomodaram em caminhar ombro a ombro com pessoas que clamavam por uma “intervenção militar” e todas as suas horrorosas variáveis.
Não faz o menor sentido sair para uma manifestação nas ruas carregando um cartaz em que se pede a “intervenção militar”. É como entrar num restaurante de comida orgânica e pedir fast food. Bradar a favor de uma ditadura no Facebook também não faz o menor sentido. Em regimes ditatoriais uma ferramenta com as potencialidades desta rede social não existiria, não seria sequer permitida. Num regime de exceção, a atmosfera de repressão não só desestimularia a possibilidade de manifestações, como anularia qualquer ambiente onde alguém pudesse se sentir encorajado para dizer publicamente que a presidenta é “vaca”, “piranha” ou “vagabunda”. Por isto mesmo que não custa reforçar e repetir a frase que escutei de alguém próximo por esses dias e que não me sai da cabeça: “Ainda prefiro as vaias e os gritos de uma democracia do que o silêncio de uma ditadura”.
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