A REVOLUÇÃO ESTÁ SENDO TELEVISIONADA?


Segundo a transmissão da Rede Globo feita pela Globonews, de acordo com a Polícia Militar foram mais de 1 milhão de pessoas na avenida Paulista na passeata deste domingo, 15 de março. Já o instituto de pesquisa Datafolha contabilizou 210.000 manifestantes. A diferença é discrepante, quase 800.000 pessoas a mais na televisão. Duas empresas que tem comprometimento jornalístico com dois dados diferentes diz muito sobre que país estamos lendo nos jornais e assistindo na televisão.

O protesto aconteceu em dezenas de cidades, em maior ou menor proporção, no Rio de Janeiro 25.000 pessoas (segundo a Globo) foram à passeata em Copacabana, e 45.000 em Brasília. A massa de pessoas que tomou conta da cidade era prioritariamente de classe média, a maioria estava vestida de verde e amarelo, estendia cartazes e gritava nas ruas "Abaixo a Corrupção" e "Fora Dilma". Agora, como pode pessoas vestidas com o escudo da CBF clamarem o fim da corrupção, eu não sei, está aí um paradoxo. Durante o ato circulou um abaixo assinado pelo impeachment que estava sendo assinado na hora em várias cidades. "Primeiro vamos tirar a Dilma e depois a gente vê quem fica e o que faremos em seguida", explicou o militante Michel Cruz em SP, segundo reportagem do El País. O que já demonstra que no protesto tinham pessoas comprometidas com o nada, de gente mimada dizendo "assim não quero, assim não me faz bem", sem proposta alguma.

Acompanhei tudo isso de casa, pela televisão e pelo Twitter. Na rede social dava para ler comentários de pessoas que estavam dentro das passeatas e de outros contra o movimento, com informações atualizadas a cada segundo. Pela televisão, bem, tudo parecia uma grande superprodução de Hollywood, ou melhor, do Projac, já que a Globo transmitiu a manifestação o dia inteiro.


IMPEACHMENT - A NOVA NOVELA DA GLOBO

Se a revolução está sendo televisionada, então não é revolução. Afinal de contas sabemos qual a posição da emissora em relação ao atual governo, sabemos que é do seu interesse que a Dilma caia. Visto que dias antes a Globo anunciava que faria a transmissão da manifestação – como quem avisa que vai transmitir a final da Copa ou o Oscar –, divulgando o movimento, convocando os telespectadores, então podemos dizer que a emissora esteve presente como manifestante, que era um dos presentes gritando "Fora Dilma."

Mais um exemplo, dois dias antes atores da emissora postaram vídeos na internet convocando os fãs para irem às ruas. Márcio Garcia, Christine Fernandes, Malvino Salvador, Marcelo Serrado, Alessandra Maestrini, Kadu Moliterno foram alguns dos que gravaram. Mas o vídeo mais compartilhado foi o do Caio Castro dizendo "Basta de corrupção, não dá mais para viver num país sem um hospital público de qualidade, sem uma escola pública para os nossos filhos", o que demonstra a sua falta de conhecimento já que o movimento que ele estava divulgando é de direita e tem interesses em facilitar as instituições privadas. Acho que ele estava divulgando a manifestação errada. Vale a pena lembrar aqui que o ator criou uma polêmica no ano passado ao assumir que só lê por obrigação e que não gosta de teatro. Alguém confirma que ele foi pessoalmente às ruas ou ficou manifestando do Projac?

O que eu assistia ontem pela Globo parecia mesmo um programa da casa. Seus comentaristas "comemoravam" o protesto, comentando o que viam, lendo os cartazes, acompanhando tudo como se fosse um desfile de escola de samba. Nitidamente foi uma transmissão contrária a de Junho de 2013 em que noticiaram que havia milhares de pessoas em uma passeata atrapalhando o trânsito.

Pois era o contrário nas ruas também, nas manifestações de 2013 e 2014 a massa de gente gritava "O povo não é bobo, abaixo a rede Globo", estendiam cartazes com "A Globo apoiou a ditadura", entre outros. Desde então a Rede Globo sentiu a obrigação de assumir, em editoriais e vídeos, que compactuou com a ditadura militar e manipulou debates eleitorais de 1989 para beneficiar o Collor contra Lula. Não é improvável pensar que no futuro ela volte a assumir a sua influência neste último protesto. Concluindo que seus interesses políticos acabaram gerando uma mancha na história do país, estamos sobreavisados e acho bom não esquecermos disso ao sermos atingidos por algum de seus noticiários.

Fui dormir e na televisão comentaristas ainda falavam sobre a repercussão, faziam suas declarações, davam as suas notas. Antes de cair no sono me perguntei, a gente também pode fazer manifestação ou a Globo já adquiriu a patente?


REDES SOCIAIS – A REVOLUÇÃO COMPARTILHADA

Não, nenhum cartaz contra a falta d`água, sonegação de impostos, investimento privado nas campanhas eleitorais, cartel do metrô, aumento das passagens de ônibus, influência das construtoras no jogo político, nada. Não houve notícia de alguém pedindo o afastamento do Eduardo Cunha ou do Renan Calheiros. Nada. Além dos gritos "Fora Dilma" e "Dilma, vai tomar no cu", o que foi mais compartilhado nas redes sociais foram fotos com faixas pedindo intervenção militar, outras pedindo um congresso evangélico, extremistas de direita, bonecos do Lula e da Dilma enforcados, vídeos com entrevistas de homens e mulheres, de todas as idades, pedindo o impeachment, culpando o PT por todos os problemas do país. Selfies, muitas selfies ao lado da bandeira, da capa da Veja e do Lobão. Vídeos curtos com manifestantes dizendo que era uma passeata com "gente bonita e honesta, nada de vagabundos", um outro disse "aqui está cheio de gatinhas". E um casal que levou a babá – destacadamente vestida de branco – para cuidar do seu filho durante a passeata.

Jornalistas da revista Carta Capital foram expulsos do ato (claro, a manifestação era da imprensa concorrente). No Rio de Janeiro um provocador foi à passeata vestindo uma camisa vermelha com o símbolo do comunismo, se desviando de socos aos gritos de "Esse cara tem que apanhar", ou "Tira a camisa dele", foi salvo do espancamento por policiais. Um vídeo foi colocado no YouTube com as imagens, cujo título é "O comunistinha deu sorte. A PM que ele tanto odeia o salvou de levar uma surra!". Linchamento, ditadura militar, bonecos enforcados, se isso tudo não é vandalismo, então o que é?

E por falar em Polícia Militar, foi tranquilão. Os generais souberam muito bem distinguir o que é manifestação de elite – que tem que ser bajulada e protegida –, da manifestação dos pobres e vândalos – que tem que dar porrada, reprimir e prender. Ou seja, observando a passeata de ontem dá para reforçar o dito popular de que quando um não quer, dois não brigam. A polícia foi aplaudida pela multidão, muitos presentes tiraram fotos abraçados a soldados da tropa de choque e postaram nas redes sociais com orgulho.

Enquanto que na televisão nada disso foi destaque. Para o telespectador que ficou em casa, estava tudo lindo e maravilhoso, parecia que o Brasil iria mudar. Muitas pessoas decidiram ir às ruas depois que viram pela televisão que parecia um movimento bonito. Talvez por isso o protesto tenha aumentado de volume na parte da tarde. Claro que o movimento não era apenas de pessoas que queriam um golpe militar, mas é que marchar ao lado de cartazes como esses é comprometedor, para não dizer assustador. E se você assiste uma coisa pela televisão e se convence de que deve participar, e vai às ruas e não é nada do que estava vendo, então temos aí um grave problema de informação.

É preciso estar com o olho aberto, a cabeça alerta, e o cu preparado para a briga. Eu estava nas manifestações de junho de 2013 e nas que vieram antes e depois. Não fui à essa porque percebi desde o início que se um grupo de comunicação está envolvido na mobilização de pessoas – o mesmo grupo que foi um dos alvos principais das manifestações passadas –, então há algo de errado no front. Como vimos, estava mesmo. É necessário uma reforma política, sim, mas nada de intervenção militar, evangélica, extremista. Uma manifestação contra a corrupção é urgente, mas não é um impeachment agora que vai solucionar isso. Por um estado laico, pela regulação da mídia, pelo fim da PM, pela proibição do financiamento de campanhas políticas, sim sim sim sim. Há muito o que mudar e nada disso foi levantado nas ruas no dia 15 de março de 2015, nem veiculado na televisão e nem nas redes sociais.


OS LINKS

Aqui na nossa residência ORNITORRINCO, Domingos escreveu sobre a poética patética dos cartazes e Danilo escreveu sobre a o mal do impeachment, e Gabriel Camões sobre o exercício do protesto. A revista TRIP fez um vídeo sobre a forte presença de pessoas pedindo a intervenção militar. O site UOL também editou um vídeo sobre o mesmo assunto. No Opera Mundi um jornalista foi às ruas e escreveu o que viu, quem entrevistou, etc. O site Jornalistas Livres fez um vídeo sobre a confusão de interesses na passeata. A BBC perguntou aos manifestantes do dia 13 de março (quando ocorreu uma passeata contra o impeachment) e do dia 15 de março, o motivo pelo qual foram às ruas.

Na sexta-feira fiz um cartum satirizando a presença da mídia na preparação de um protesto organizado pela elite:


Acho que as pessoas leram a revista "Caretas" pois foi o que aconteceu. O portal Último Segundo listou imagens das "gatas do protesto" que postaram suas selfies diretamente da rua. Minha conclusão: é muita produção para pouco conteúdo.