ABORDAR OU NÃO, EIS A QUESTÃO



"Se você encontrasse o Woody Allen, falaria com ele?". A pergunta me desatou a falar.

Falo muito. Uma vez contei uma piada de Maricá ao Rio de Janeiro – o que dá tipo uma hora e meia. Eu era criança, única razão pelo qual os outros integrantes do veículo permitiram o acontecido. Virou mito na família. Sim, gosto de falar. Mas a minha resposta para a pergunta que abre esse texto é não, provavelmente não.

A possibilidade de encontrar Woody Allen é mais concreta do que pode parecer. Vivo temporariamente em Nova York, posso estar na porta dele em meia-hora. E toda segunda ele toca clarinete numa banda de jazz num hotel, onde ainda não consegui ir. Mas o que dizer para alguém cujo trabalho se admira? "Parabéns pelo seu trabalho, acho você foda"? Ou então enumerar suas razões para admiração. Ou pedir um autógrafo? Uma foto? Um abraço? E no caso de Woody Allen ou de (quase) qualquer pessoa que eu admire e possa encontrar num ambiente não profissional, eu simplesmente não quero perturbar o cabra.

A abordagem a pessoas públicas é constantemente como argumento de que essas pessoas gostam de ter o seu trabalho reconhecido. Certo. Mas por que reconhecimento deve vir na forma de ser abordado por um estranho na rua? Há tipos diferentes de pessoas públicas. E há estágios diferentes no trabalho dessas pessoas. Traduzindo, alguns devem ouvir a mesma coisa dezenas de vezes no mesmo dia. Qualquer coisa de mais 'inteligente' que você possa pensar em dizer para se diferenciar, esse sujeito já deve ter ouvido ontem.

O próprio Woody Allen escreveu e interpretou, em 'Memórias', um cineasta às voltas com um reconhecimento obtuso por parte dos fãs, que o abordam de forma histérica constantemente, chegando a questionar suas escolhas artísticas e pedir conselhos e opiniões sobre um roteiro. O escritor J.D. Salinger frequentemente sofria com a perseguição de leitores de 'O apanhador no campo de centeio' que viam nele um guru e queriam uma palavra de sabedoria.

Mas meu ponto principal é que, pra mim, esse tipo de aproximação sempre se refere mais ao ego de quem se aproxima, do que do aproximado. É a velha questão: quando você diz que está fazendo algo por alguém, está realmente fazendo pelo outro ou pelo prazer que fazer pelo outro te confere? Essa foto, esse autógrafo, essa conversa, é pelo momento, pelo artista, ou pela exibição posterior? No fim das contas, haverá algo além de egoísmo?

Ao mesmo tempo, à medida em que cheguei até aqui nessas linhas, sinto que posso ter acabado de cagar uma regra do tamanho dessa página. Se tem algo que faço (quase) tanto quanto falar é cagar uma regra, tirar essa conclusão precipitada baseado em meus próprios preconceitos. Abordar alguém que você admira para um autógrafo, uma foto, ou simplesmente para lhe falar algo que você considera importante de ser dito, pode ser apenas o próprio ego falando. Mas e aí? Quem se importa?

Conheço um repórter brasileiro que contou pro Steven Spielberg que, quando criança, tinha viajado horas do interior até uma cidade vizinha para ir ao cinema pela primeira vez na vida. O filme era E.T. Spielberg chorou ao ouvir a história.

Eu mesmo só cheguei ao ORNITORRINCO porque curti o trabalho da galera. E aí persegui o Pardal.

E ainda lembro de uma noite em que assisti à peça 'A alma imoral' pela primeira vez. Quando vi Clarice Niskier saindo do teatro, fui falar com ela. E aquela breve conversa mudou a minha vida.

Talvez se eu encontrasse o Woody Allen amanhã eu lhe diria obrigado. Talvez lhe pediria um abraço. Talvez lhe falasse que, numa experiência de sonho acordado numa aula de atuação, uma viagem em estado sóbrio, ele estava no meu 'lugar mais bonito', na minha idealização, e nós nos falávamos como se tivéssemos trabalhado juntos. Ou talvez eu não lhe dissesse nada. Mas se eu encontrasse a Clarice Niskier amanhã, eu certamente lhe diria que aquela noite mudou a minha vida. Ainda que fosse só por mim, só pelo desejo de lhe falar. Ainda que ela já tenha ouvido isso várias vezes.

De qualquer jeito, sempre falo demais mesmo.


lucas.png
LUCAS GUTIERREZ
Ator, escritor, jornalista e colunista do ORNITORRINCO