O DESEJO: A PALAVRA AINDA NÃO INVENTADA


Vivemos, talvez mais do que nunca, a era do grito. No início do ano, por pouco mais de um mês, tive a sorte de conseguir passar as férias de verão com um amor que mantenho à distância. Ele é um desses amores que a gente não consegue dar nome: meio amigo, meio namorado, meio parceiro, inteiro ardor. Tempos líquidos, diria o Bauman, não fosse o fato de que nos conhecemos “à moda antiga”, numa festa. Atravessou minha vida em 2013 e, desde então, Yann desliza sob as marés do meu peito, como aquela fotografia guardada na gaveta à qual sempre retornamos.

Exigente e reclamão a maior parte do tempo, como um bom francês-cineasta-underground, Yann experimenta um entusiasmo pisciano genuíno ao partilhar comigo o que lhe comove: ele me mostra coisas. Discos, sonhos e filmes, sobretudo. E foi assim que me transpassaram As mãos negativas, curta metragem da escritora francesa Marguerite Duras, de 1979. Com uma narrativa límpida e precisa, Duras nos convida a um olhar para si através do outro. O ponto de partida da escritora é o fenômeno inexplicável das chamadas “mãos negativas”, encontradas em cavernas do sul da Europa. Sem qualquer outro motivo aparente, nossos ancestrais se fascinaram com a descoberta da obtenção da forma pela ausência: punha-se uma mão aberta sobre a parede de granito e, com a outra, contornava com cor; magicamente, o vazio-pleno, o desenho da mão eternizado, daí a nomenclatura contemporânea de que eram impressões negativas.

O concreto e o abstrato dançam. E, como uma da mais sensíveis poetas do indizível, Duras nos diz que aquelas mãos foram gritos. Aquelas mãos fomos nós. Nós, todos. O fenômeno é datado de trinta mil anos.

Trinta mil anos.

Éramos nômades. Sem grandes civilizações ou tratados filosóficos. Nós, hoje, estúpidos que somos, do topo de nossas torres egóicas, erguidas com os tijolos do racionalismo, olharíamos tais humanóides com desprezo, destituídos de sensibilidade, pré históricos. Tão somente pelo fato de que estas bestas bípedes errantes, nossos ancestrais, ainda não usufruíam da linguagem da maneira como a conhecemos.

Tolos, nós. Sábia, a Marguerite.

Há mais ou menos três semanas, pela primeira vez, criei uma conta no aplicativo Grindr, porque todos estão cada vez mais fechados e porque tenho cada vez menos tempo e porque sim. Porque percebi a hipocrisia disfarçada que mantinha, forjada lentamente ao longo de 14 anos de criação evangélica, que me faziam refutar categoricamente toda e qualquer identidade gay que flertasse com a Geni da canção do Chico Buarque: o que chamam promiscuidade e que na verdade é, apenas, a liberdade de lidarmos com nossos corpos, fazendo com eles o que bem entendermos. E, é claro, porque Yann está longe.

Gilles Deleuze nos diz que somos a civilização da imagem, mas eu acho que nós estamos retornando à era do grito. Navegando pelo Grindr, sobre uma paisagem inundada majoritariamente por torsos sem cabeça, cuecas sem pernas, rostos sem nome, tive a impressão de que todos gritávamos. A profusão de imagens é de um silêncio estridente. Os gritos de que falo, lá, são como as mãos negativas de Marguerite: elas estão lá, expostas, gritando “Eu sou! Eu estou aqui!”

O excesso de imagens se condensou, virou fluxo, caldo, pirão, feed, cataplasma, eco, som. Voltamos ao grunhido, ao murmúrio, ao gemido. E, para essa nova forma de acesso e exibição do desejo, para esse impasse, essa encruzilhada, esse beco sinestésico, ainda não inventamos palavra.

Duas sensações me dividem no Grindr, solidão e amor abundante.

Olho para os outros perfis, mesmo os que julgo patéticos, mesmo os que me arrancam um riso ou um lamento, e vejo a mim: como uma folha de papel vegetal, cara à cara, nos dividindo de maneira falaciosa. Vejo outros que, como eu, também gritam. Como não amá-los? Como não perceber que trazem, prenhe em si, por trás de toda a merda eventual, o desejo que nos une, tudo aquilo que não vira palavra? E os versos de Duras me embalam como um murro carinhoso:
Tu que tens uma identidade, tu que tens um nome, eu te amo.(...)Amarei quem quer que ouça que eu grito que te amo.
O poema de Duras sobre a linguagem e o desejo humano me parece a chave, a fuga, a escapatória para o niilismo no qual o Grindr eventualmente me submerge: precisamos amar. Gritar. Não podemos refutar o desejo, sob pena de negarmos o que há de mais genuíno em ser gente.

Talvez estejamos todos doentes, e o Grindr é um dos mais agudos sintomas. Não sei, não sabemos. Mas o que me dá certeza em face a esse espectro branco, o rugir do oceano-mundo, insustentável, é justamente ele, tudo que não vira linguagem, o desejo. E seguirei sendo aquele que gritava que te amava, tu.


Jonatan Agra é estudante de História.