DIÁRIO DO FILME 'HOMEM LIVRE' - PARTE II


Um filme não se faz sozinho ou Tirando as coisas do papel

Maravilha, temos um roteiro. Demorou, mas saiu. E agora?

Tínhamos adiado nossos prazos com a Secretaria de Cultura até o máximo possível. Mas, não poderíamos passar do 1o semestre de 2015. Com o a reescritura do roteiro terminada em janeiro deste ano, todos os departamentos começaram a mobilizar seus esforços. Para ter um corte do Homem Livre montado em Julho pra apresentar à SEC, estabelecemos as filmagens entre abril e maio.

Duas atitudes foram muito importantes na reescritura do roteiro de Homem Livre: enxugar ao máximo a quantidade de locações e também de personagens. Tínhamos que fazer do roteiro um filme possível com a nossa verba enxuta. Com isso em mente, conseguimos reduzir as ações a uma única locação principal, onde cerca de 80% do filme se desenrola, que é o sobrado onde funciona a Igreja Nossa Fé, do pastor Gileno Maia. Um sobrado suburbano com algumas características peculiares, o que dificultou um pouco a busca. Mas, pelo menos, era apenas um local (o que se revelou uma mentirinha, já que, graças à magia do cinema, vamos conseguir fazer com que o interior de um sobrado e a fachada de outro pareçam um mesmo lugar no filme).

Em paralelo, começamos a esboçar o nosso elenco. Tínhamos confiança no roteiro a tal ponto de acreditar que bons atores poderiam se interessar em fazer o filme mesmo recebendo cachês pequenos. E isso é algo que acontece sim.

Ao longo desses 3 anos de reestruturação do roteiro e do filme, muitos atores passaram por nossas cabeças em conversas meramente especulativas.

Um grande inconveniente era que estávamos em janeiro/fevereiro querendo um ator para rodar em Abril. Poderíamos ter problemas de agendas comprometidas. São muitos convites pra filmes, peças, novelas e séries. E nosso protagonista está em 100% das cenas do filme. Não podíamos compartilhá-lo com algum outro trabalho puxado como uma novela ou um outro filme. Seria um desafio montar esse elenco.

Eis que surge, para encarnar nosso protagonista Hélio Lotte, o nome de Armando Babaioff. Além de talentoso, ele já tem um rosto reconhecível após alguns papéis em novelas. E, o melhor: tinha agenda possível. Um trunfo era que Babaioff é uma pessoa próxima, com amigos em comum e fácil acesso. Mas, não fosse uma boa idéia, não teríamos sequer cogitado convidá-lo pra protagonizar o filme.

“Além do talento (o Babaioff vem mandando bem no teatro há anos), eu gosto dele fazendo o Hélio porque o sujeito convence tanto como ídolo adolescente, quanto como ex-presidiário detonado (com alguma caracterização, claro). Isso era fundamental para o Hélio.” – me disse Alvaro Furloni, o diretor de Homem Livre.

E, sendo um cara que tem forte presença no teatro e já vem emendando papéis em sequência em novelas na Globo, ele tem muita vontade de fazer mais cinema. E essa pilha que ele demonstrou desde a primeiríssima conversa sobre o Homem Livre foi muito animadora pra gente. Como eu disse no texto passado, sobre se envolver num projeto B.O. em que a compensação financeira não é o destaque, a excitação é condição fundamental.

Babaioff, na primeira conversa sobre o Homem Livre, disse que achou o roteiro estranho e sedutor, o que o atraiu muito e fez com que ele ajustasse ou se desligasse de compromissos previamente acertados com outros trabalhos. Armando Babaioff colocou o filme debaixo do braço e cravou: esse papel é meu.

Babaioff, entre outras coisas, vai precisar se tatuar (de mentira, claro), aperfeiçoar-se no violão e no canto. É o próprio ator quem gravará a música que, na trama, foi sucesso na voz do personagem Hélio Lotte com sua banda Aguarraz, antes dele cometer o crime.

Pronto, tínhamos o protagonista, um ator que tem que ficar todo o tempo com a gente. Agora, era hora de escalar os demais personagens. Entre os coadjuvantes, dois são mais destacados no roteiro: o Pastor Gileno Maia, chefe da igreja que abriu as portas para receber Hélio Lotte; e Jamily, uma garota de 18 anos que se envolve com Hélio.

Para Gileno, queríamos um ator na faixa dos 50 anos. Flávio Bauraqui era nossa primeira opção e fiquei muito feliz quando soube da confirmação de sua participação no filme. Bauraqui é um ator muito requisitado, sobretudo em cinema, então ter um cara do porte dele aceitando fazer o filme porque se encantou pelo personagem é realmente recompensador. Gileno Maia é um personagem forte, ex pastor de uma igreja evangélica gigante que optou por fundar sua própria congregação e pregar tudo o que acredita como sendo a verdadeira palavra de Deus. Um personagem complexo, bom mas, ao mesmo tempo, controverso. Alguém de quem Hélio desconfia cada vez mais ao longo do filme.

Jamily, por sua vez, é uma menina de 18 anos que frequenta a igreja por influência da família, sem muita convicção. Lá ela toca violão nos cultos, algo que lhe dá genuíno prazer. E, a partir do momento em que Hélio, outrora um músico de sucesso, passa a frequentar a igreja, Jamily fica realmente empolgada. Pouco lhe importa o passado de Hélio, passado esse do qual ela sequer tem lembranças. Era uma menina quando o crime aconteceu. O fascínio por Hélio transforma-se numa sedução velada que, no fim das contas, mais o confunde do que o ajuda.

Pro papel, escolhemos selecionar uma jovem atriz através de testes. Eu, particularmente, acho teste de elenco uma coisa bem desagradável, odeio ficar na posição de júri, juiz e executor. Mas, no universo de atores e atrizes, isso é algo cotidiano. Assim, divulgamos os testes e pré-selecionamos algumas meninas para aparecerem em determinados dias para uma gravação.

Dessas, 6 foram selecionadas para uma nova rodada de testes, desta vez já contracenando com Babaioff. Foi um processo doloroso porque várias meninas poderiam funcionar na personagem. No fim das contas, foi um jogo de pesar as variáveis que compõem o papel, as virtudes que cada uma poderia trazer à personagem, até chegar numa conclusão. Thuany Andrade foi a escolhida, em seu primeiro papel num longa-metragem.

Outros papéis menores, mas com cenas chave, também mereceram esforços para conseguirmos nomes desejados. É o caso do personagem Miranda, um empresário enigmático do bairro de Piedade, subúrbio do Rio onde se passa a história. O ator Márcio Vito, presença frequente em filmes independentes cariocas, foi o escolhido.

E para o papel de Marcela, uma jornalista misteriosa que persegue Hélio ao longo do filme, teremos a atriz Rosane Mulholland, que, entre outros filmes, protagonizou "Falsa Loura", do saudoso Carlão Reichenbach.


Somam-se a eles os outros atores escolhidos para os demais papéis, e temos rosto e voz para todos os personagens que, há pouco, só existiam no papel e nas cabeças minha e de Alvaro.

Esse momento do casting é muito interessante, divertido até (sobretudo a fase de especulações descompromissadas). Mas, ao mesmo tempo, é extremamente delicado e desafiador. Muito do trabalho de roteiro e direção é aperfeiçoado (ou até mesmo salvo) a partir do momento que passa a ganhar realidade através do elenco. Uma boa escolha de elenco é fundamental.

Atores merecem mimos porque, antes de tudo, são as figuras mais expostas ao escrutínio popular. Eles são o batalhão de frente na nossa guerra pelo êxito, o primeiro choque com o espectador.

Atores, locações, equipe (para a maioria, também o primeiro longa. Muitos são oriundos da UFF, onde eu e Alvaro também estudamos), todas as coisas vão se encaminhando e se resolvendo (talvez o pessoal da produção tenha outra visão, rs). O filme parece voar em céu de brigadeiro. Será que é um prenúncio para filmagens tranquilas, ou é só a calmaria que antecede a tempestade? Cenas do próximo capítulo.


Pedro Perazzo é roteirista e colaborador do ORNITORRINCO.