DIÁRIO DO FILME 'HOMEM LIVRE' - PARTE I



De um roteiro final a outro ou Do fim ao (re)começo

Essa é a história de um filme que ganhou um edital pra ser feito e que só três anos depois ganhará a luz do dia, porém bastante diferente. É a história de um roteiro pronto o suficiente pra ganhar o edital, mas que, pra virar filme, precisou morrer pra renascer.

O filme é “Homem Livre”, roteiro meu, direção de Alvaro Furloni, produção da Segunda-Feira Filmes e contemplado no edital de longas B.O. da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro em 2012.

Homem Livre é um longa cujo parto foi tenso, longuíssimo, cheio de crises, ameaças de aborto e transformações na cria. A expectativa agora confunde-se com ansiedade. Eu estou satisfeito com o roteiro que vai pro set. Alvaro, o diretor, também está. Mas, será que a dificuldade do processo de criação amoleceu nosso julgamento?

Mas, afinal, de que processo eu estou falando?

Bom, deixa eu retroceder um pouco. Quer dizer, um pouco, não. Deixa eu retroceder pelo menos uns 3 anos. Voltemos pra 2012.

Em 2012, tudo era diferente, inclusive o roteiro que eu tinha escrito, “Homem Livre” e era hora de inscrevê-lo nos editais. Estava aberto um da Secretaria de Cultura do Rio, e foi quando convidei Alvaro Furloni, amigo pessoal, mas também alguém cujo trabalho eu admirava, pra dirigir o filme. Ele já tinha lido o roteiro, sugerido coisas, dado opiniões. E, bem, ele topou.

Mas, como fui descobrir mais tarde, a relação de Alvaro com o roteiro era controversa. Na verdade, o grande problema é que ele não sentia aquela obra como algo pessoal dele, algo que ele quisesse narrar. Não eram as questões dele, nem questões que lhe tocavam no íntimo, naquele momento. E isso, pra um cara com o perfil autoral dele, era essencial. Não sei, e acho que nem ele, porque ele topou entrar no projeto naquele momento. Mas calhou da gente ganhar. E agora? Vai dirigir um filme com orçamento baixíssimo sem estar cheio de tesão?

Tanto eu como Alvaro sabíamos que o roteiro merecia ser ajustado. Em parte porque havia margem para o roteiro ainda melhorar, em parte porque precisávamos enxugar muito o filme pra caber no orçamento miserável (para longa de cinema) que tínhamos.

Aliado a isso, a SEC demorou muito, muito tempo mesmo, pra começar a soltar a grana. O resultado do edital fez aniversário e nada da grana. Enquanto a verba não pingava, íamos tendo encontros e decidindo por mudanças no filme.

A cada encontro, mudanças pra lá e pra cá. No enredo, na estrutura, no nome dos personagens, no gênero. Nada era sagrado, tudo podia ser alterado (e praticamente tudo foi, ainda que eventualmente voltássemos ao que antes fora descartado). O mais incrível é que, na premissa, num resumo simples, o filme pode ser contado da mesma forma como antigamente. Mas basta detalhar um pouco mais que se descobre uma série de novidades entre as versões.

O roteiro que ganhou o edital contava a história de um cara que acabava de sair do presídio, onde ficou os últimos anos condenado por ter assassinado a própria esposa, num crime que chocou o país e foi objeto de extensa cobertura midiática. O filme começava no momento em que esse cara saia da prisão e passava pelas dificuldades e preconceitos que ele sofria por ser quem era, um homem (e um nome) marcado.

Num resumo assim, a história segue igual. Mas o roteiro está bastante diferente. Na versão final, Hélio Lotte, o protagonista, também sai da prisão após ter cometido um crime famoso. Mas, se originalmente a fama vinha da esposa assassinada, agora é Hélio quem era a celebridade no casal – um cantor de uma banda de sucesso. Depois de 12 anos preso, Hélio sai da cadeia convertido a evangélico e, por isso, é adotado numa igreja por um pastor, Gileno Maia.

Gileno, única mão estendida na direção de Hélio, oferece emprego e um lugar para ele morar. Parece perfeito. Durante seus anos na cadeia, Hélio se tornou um evangélico autodidata e embora não concorde com tudo o que Gileno diz, ele prefere se esconder em uma pequena igreja de subúrbio a enfrentar o mundo lá fora.

O problema é que o passado de Hélio volta para assombrá-lo no presente. Sua antiga carreira e o crime que cometeu se misturam à hostilidade e à rejeição dos fiéis da própria igreja e tem início um processo de desconstrução do qual Hélio não consegue se libertar. Hélio sabe que algo de muito ruim está prestes a acontecer e que o seu pior inimigo é ele mesmo.

O enredo é esse, mas pra se chegar aí, muita água rolou.

Com a demora do dinheiro em sair, houve tempo de nós mesmos mudarmos muito. Casamentos se findaram, mudanças de endereço, de cidade, de trabalhos. Se a vida mudava tanto, como não mudaríamos como pessoas, como cinéfilos, como storytellers?

Em determinado momento estávamos encantados com algum filme, algum estilo de narrativa, alguma coisa visual, algum tema. E a cada encantamento, vinha a influência em cima do Homem Livre. E o filme passeou por vários gêneros e estilos. As nossas referencias foram muitas, e distintas. O Lutador, O Profeta, Ferrugem e Osso, Gênio Indomável, Contra a Parede. Todos esses filmes foram referencia principal pra gente em algum momento. É engraçado olhar a lista assim, porque os filmes são bem diferentes entre eles. Mas, olhando o processo – e até o roteiro final – dá pra enxergar o que cada um deles contribuiu pro nosso resultado.

Ao mesmo tempo que foi muito desgastante, esse processo foi um grande aprendizado. Não apenas na relação roteirista-diretor, mas principalmente no nosso entendimento de dramaturgia e narrativa. Dissecamos vários filmes, roteiros, cenas, na busca por delinear melhor um plot, um personagem ou uma situação.

Ao longo de dois anos, mexemos muito no roteiro. Costumo brincar que devo ter uns outros três longas escritos, além do que efetivamente será filmado como Homem Livre. Mas, o mais importante é que nós achamos, de verdade, que o melhor deles é exatamente o que vai virar filme.

Este processo de criação coletiva (no caso eu, Alvaro e Davi Kolb, outro roteirista/cineasta amigo, que participou sempre dessas reuniões de recriação do roteiro) é enriquecedor, abre horizontes e oxigena a inspiração. No nosso método de trabalho, a criação era coletiva, mas a escrita propriamente dita (do roteiro ou das peças preliminares, como escaletas e argumentos) ficava centralizada em mim. O que, pro meu gosto, é um esquema mais funcional e eficiente.

No meio de 2014, já frustrado com o não andamento das coisas (a gente se reunia, repensava, reescrevia, mas a satisfação plena com os resultados alcançados nunca chegava), temi pelo pior. Foi quando conclui que Alvaro não tinha o que dizer a partir daquela história tal qual estava estruturada. Eu entendia que ele tinha um espírito de autor e que estava encontrando dificuldades de se relacionar com um roteiro alheio. Faltava a ele encontrar estímulos dentro do projeto, que atiçassem seus instintos e sentimentos em busca da realização do filme.

A grande questão em Homem Livre era chegar num roteiro final que mantivesse as questões que me interessavam e estavam desde o primeiríssimo tratamento, mas agregasse também temas e questões pertinentes a Alvaro. Nosso grande esforço foi chegar numa criação conjunta nossa, roteirizada por mim, mas que ele se sentisse também autor.

O que fazer nesse ponto de estagnação? Ou iríamos devolver o dinheiro, ou Alvaro sairia do projeto, ou continuaríamos martelando até chegar em algum lugar, mesmo sem saber o quê, como ou onde.

Devolver o dinheiro não era uma opção pra mim (e acho que pra ninguém, ganhar edital é foda). Além das questões afetivas que eu tinha com o projeto, eu considerava essencial dar esse passo (o longa-metragem) para minhas pretensões profissionais. Esse filme tinha que sair.

Trocar o diretor também não seria simples. Além de ser contra as regras do edital (por mais que pudéssemos pensar em brechas ou justificativas), eu tinha intencionalmente convidado Alvaro por acreditar muito nele como cineasta. E ele demonstrou, sim, querer fazer o filme. Só precisávamos achar esse filme.

E assim, aos trancos e barrancos, seguimos na opção de quebrar a cabeça, queimar os miolos, pra chegar no filme que todos nós abraçássemos com gosto. Só sairia assim. Não seria pelo dinheiro, a compensação financeira nesse caso é fraquíssima. Tinha que ser pela arte. O filme precisaria nos excitar. Pra um projeto ultra-BO e independente como o nosso, a paudurecência é primordial.

Um mês depois, surgiu a idéia que, finalmente, trouxe Alvaro de corpo e alma pra dentro do projeto e que, ao mesmo tempo, me excitava, novamente, a contar a história de Hélio Lotte, nosso protagonista, agora sob novos e estimulantes prismas.

Em janeiro de 2015 nasceu o tratamento de roteiro que finalmente nos fez crer que tínhamos um filme. Já podíamos, com esse tratamento, ir atrás de atores e equipe, colocar a produção pra trabalhar.

Em fevereiro e março, algumas mudanças pontuais foram feitas, mas sem alterar as demandas dos outros departamentos. Locações foram escolhidas. Os lugares do roteiro agora têm endereço. Atores foram convidados, testados e contratados. Agora os personagens têm cara, tem voz.

No final de Abril de 2015, Homem Livre começará, enfim, a ser rodado.

Estamos fazendo o filme.


Pedro Perazzo é roteirista.