O MÉTODO MARINA ABRAMOVIC - RELATO DE UMA VISITA

Marina Abramovic aparece vestida com jaleco branco – as iniciais MAI (Marina Abramovic Institute) bordadas em vermelho no peito esquerdo – em 3 ou 4 telas à minha frente. Estou rodeada por um grupo de pessoas desconhecidas, todos deixamos nossos pertences em armários, alguns se livraram até dos sapatos e estamos prestes a experimentar, por cerca de duas horas o “método Abramovic”. A experiência do método na exposição em cartaz no SESC Pompeia, São Paulo, estabelece 4 etapas precedidas por uma série de exercícios que preparam o corpo para tal, como por exemplo: esticar os braços para cima e deixá-los cair pesados pelas laterais; bloquear uma narina com o polegar e respirar 9 vezes pela outra (e vice-versa); massagear as bochechas e o queixo com as mãos; abrir a boca, botar a língua para fora e dizer “ah”; sacudir as pernas, braços, cabeça, o corpo todo.

Outro grupo, o dos chamados “facilitadores”, auxilia na organização e indica o que devemos fazer em cada etapa. Eles são jovens, vestem um macacão industrial e se movimentam de forma lenta. Morosamente distribuem fones que isolam os sons ao redor e nos levam para interagir com os “objetos transicionais”. Etapa um: ficar meia hora em pé diante de uma torrezinha de madeira que contém 3 cristais espetados em sua direção – um na altura da cabeça, outro na altura do umbigo, e o último apontando para o púbis (“se sentirem algum desconforto ou precisarem se sentar, por favor, evitem cruzar as pernas para não bloquearem o fluxo de energia”, disse um dos facilitadores antes de ficarmos surdos). Etapa dois: ficar meia hora sentado numa cadeira de madeira com espaldar comprido, atrás do qual há diversos cristais espetados. Etapa três: ficar meia hora deitado numa cama de madeira que tem um cristal posicionado de maneira a pairar sobre a sua cabeça. Etapa quatro: em grupo, seguindo um facilitador que vai na frente como guia, realizar uma caminhada lenta, por meia hora, numa reta onde se veem pequenos cristais pelo caminho.

Terra Comunal - Método Abramovic - SESC Pompéia 2015

Marina Abramovic no SESC

Sou do time que tomou conhecimento de Marina Abramovic a partir do viral de sua performance de 2010, no MoMa, em que ela encontra o ex-marido e, emocionada, transgride as regras autoimpostas para o trabalho. Performances de longa duração me intrigam tanto pelos sacrifícios quanto pela capacidade de entrega de seus realizadores, e talvez o caso mais contundente que eu conheça seja o das performances de um ano do taiwanês Tehching Hsieh. A obra apresentada na Bienal de São Paulo de 2012, a segunda dessa série, me perturba: o artista se retratou 24 vezes por dia durante 12 meses ao lado de uma máquina de ponto que registrou suas ações por esse período. A disciplina, a obediência, as privações e a afirmação insistente de sua existência, o automatismo de um cotidiano esmagado por regras, a vigília constante e opressiva, a resistência, são tantos aspectos que emergem da sala de paredes repletas pelas fotografias que o meu primeiro impulso quando entrei ali foi doer.

Algo parecido aconteceu quando vi o registro da caminhada na China que Marina e o então marido, Ulay, empreenderam nos anos 1980. Por 90 dias percorreram a grande muralha em direções convergentes até se encontrarem, acenando bandeiras um para o outro. O encontro marcou o fim do casamento, e achei tristemente bonita e surpreendente a ideia de um ritual de separação tão intenso quanto os rituais de união. É mais inesquecível que qualquer DVD de casamento, e foi sob esse impacto que adentrei o tão alardeado “método Abramovic”.

Foi uma transição abrupta, de um minuto para o outro vi romper-se uma certa cumplicidade com Marina, provocada por The Lovers (a caminhada do divórcio), e me vi em meio a um pequeno exército de seguidores daquela aparição em vídeo que parecia uma anunciação, na concepção religiosa do termo. Prestando mais atenção, os “facilitadores” pareciam dopados ou saídos de uma comunidade hippie, estampando um sorriso permanente e uma expressão pacífica no rosto, e comecei a me perguntar se aquilo seria consequência do método ou de uma sessão de eletrochoque. De repente tudo parecia uma mistura letárgica de aula de yoga com princípios de dança contemporânea na Chapada dos Veadeiros. Era haribô demais pra mim. 

Em falas recentes da artista e em alguns materiais que li sobre ela, fiquei com uma desconfiança que levei para a exposição, a de que seu discurso adquiriu um certo tom de autoajuda e transcendência. Provavelmente isto não configura um problema e não gostaria que estas minhas impressões soassem a uma crítica de arte pretensiosa. Acho mesmo que uma grande parcela de espectadores de arte – ou cultura? – procura e anseia por experiências ditas transformadoras. Marina explora exatamente isso: possibilitar o outro a viver uma experiência, daí utilizar o termo “facilitador” para si mesma ou seus assistentes. Daí também seu 512 hours, trabalho relaizado em 2014 na Serpentine Gallery, Londres, em que passava os dias com o público geral que ia até lá para executar ações parecidas com as que se fazem em SP. Para Marina, a ideia de uma experiência “real” tem a ver com estar presente e se desligar de tudo o que se impõe e nos distrai na cotidianidade. Tem a ver com uma conexão consigo mesmo e com o outro, um pouco como se constituir como indivíduo em comunidade, se utilizando do silêncio e de uma pausa e de um senso de “agora”.

Premissas da dança contemporânea, estar presente e encontrar (ou construir) um corpo possível vêm de um desejo, e a vivência disso se faz de diversas maneiras, com a vantagem do caráter lúdico da prática, além de uma busca incessante em que a cada tentativa, intencional e irreproduzível, se encontra algo novo. Ficar em pé, sentada ou deitada perto de cristais me tornou presente por todo o desconforto causado, o que deve ser legítimo mas muito, muito enfadonho, além de facilitador para as minhas desconfianças. Não tem a ver com singularidade e também não é meditação; não estimula o corpo e não faz muito pela mente. Em uma conversa posterior com uma amiga ligada às artes também por vínculos profissionais e, como eu, diletante da dança, desconfiamos de que não tínhamos entendido nada, pensamos melhor e desconfiamos de que já tínhamos iniciação suficiente pra não achar tudo um truque. Ela levantou a possibilidade daquilo ser um grande deboche de Marina, e rimos pensando que seria mais bacana se fosse. Porque não sendo, fica só parecendo uma grande bobagem. 



juliawah.png
JULIA WAHMANN
Editora de literatura e colunista do ORNITORRINCO