Foi num livro que eu aprendi o que são sanguessugas. Não tinha Google naquele tempo. "Sanguessuga", você lia, e tinha que criar sozinho a imagem. Ou acreditar na ilustração. Livro tinha ilustração naquela idade, mesmo tendo mais de cem páginas. Era uma coleção de nove volumes escrita pela Laura Ingalls Wilder, uma americana que viveu a infância em casas de madeira construídas pelo seu pai no período da corrida do ouro. Ali eu aprendi a defumar carne, a fazer biscoitos de xarope de bordo que endureciam em pratinhos cheios de neve, eu atravessei rios em carroças cobertas por lençois brancos e fui ao mercado comprar tecido pra fazer o vestido novo daquele ano. Eu conheci meu primeiro namorado que claro que virou meu marido, tivemos quatro anos difíceis mas fomos muito felizes.
Eu era morena e a minha irmã Mary era loura e eu morria de culpa por sentir inveja disso e por ter tantos sentimentos não nobres, lá no livro e na minha cama onde eu lia. A gente tinha uma boneca de pano - a Carlota feita pela mãe dela, a minha costurada à mão pela vovó. O papai cantava pra gente dormir - o dela com um violino, o meu me trazendo o mar do Caymmi. A palavra "insônia" não existia no nosso vocabulário.
Eu insisto que ela era essa aqui.
Então nas noites de mal estar e insônia troco o Lexotan pelo leite quente com mel (sabia que se você encher um copo com pipoca e completar devagarinho com leite não derrama? a Laura sabia e me ensinou) e cato um dos nove volumes pra ler na cama como se a qualquer momento eu pudesse ouvir no corredor os passos do papai - que nessa época já não cantava mais pra gente dormir - e corresse pra apagar o abajur porque isso não era mais hora de criança estar acordada. Não é mesmo não.
*Algumas das nossas aventuras:
Mamãe cruzando o rio com nossa carroça |
Nossa casinha-caverna |
Papai cortando os troncos pra construir nossa casa |