A QUEDA DE CABELO E OS LIVROS DE COLORIR





Uma das abas do meu navegador jaz eternamente aberta num site que pesquisa os melhores preços de eletrodomésticos e embora a minha diarista reclame das panelas, o meu foco é um aspirador pequeno e portátil. A queda de cabelo atingiu um grau dramático em que eu não consigo mais terminar nenhum livro da pilha porque chego em casa e começo uma caça insana aos fios que tomam cada canto do apartamento. Acordo e vejo cabelos no travesseiro, tomo banho e cabelos escorrem ralo abaixo, avalio um original no trabalho e cabelos se espalham pela mesa entre um best-seller e um best-encalhe, meu sobrinho me abraça e vejo cachos pretos migrando pra cabeça loirinha dele.

A situação é tal que cogito ir à missa em vez de procurar um médico, mesmo porque a essa altura eu já nem sei quem é minha dermatologista. Enquanto cato os meus mortos a louça se acumula na pia, um monte de roupa cresce no sofá e minhas finanças estão no vermelho devido à quantidade de salmão (envenenado) que comprei nos últimos meses. Me sinto como Caio Fernando Abreu em “Os sobreviventes”, do Morangos mofados: “(...) já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio yoga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê?”. Dizem que é estresse, e outro dia eu explicava pra alguém que talvez seja o estresse de ver tanto cabelo perdido, ou seja, a causa já é a consequência, a minha vida capilar é uma fita de moebius e isso nunca vai ter fim.

Meu desespero é interrompido pelo número da homeopata piscando no celular. "Seus hormônios estão loucos", ela diz, e de fato ando meio louca mesmo. "A sua sorte é que você é bem cabeluda", ela arremata, "mas vá consertar isso já". Marco uma consulta com o médico dos hormônios, que fica em cima da Livraria da Travessa de Ipanema, que tem pilhas e pilhas de livros de colorir, e os dois títulos que estão no topo da lista de mais vendidos somam mais que todo o resto dela, dizia o boletim editorial daquela tarde. São variações de jardins e florestas encantados e secretos, nunca saberemos. O que eu sei é que o consolo alopata coincide com a médica haribô: "Mas você é bem cabeluda, hein? Que sorte!" Que bunda, eu penso, enquanto verifico que só resta uma última cápsula de biotina no vidro dos remédios manipulados que não deveria estar jogado na bolsa perto do celular e do Kindle, uma vez que os eletrônicos interferem no funcionamento deles, outra evidência do quanto o nó no peito só se aperta mais.


Volto para casa com um exemplar de Suruba para colorir, que me parece mais interessante que toda a flora mística e as mandalas à venda, e também porque gosto de dar uma força para os marginalizados. Há uma má distribuição generalizada nesse mundo, de comida a autoestima, não quero colaborar para mais injustiças.

No meu pote de lápis sobraram alguns poucos Staedler dos tempos da faculdade e uns mirrados Carandache que provam sua superioridade. A indústria do lápis de cor deve ostentar números tão espantosos quanto os livros que, assim como meus cachos caídos, se multiplicam por todos os lados. As livrarias promovem eventos de colorir coletivos. Camelôs do Centro da cidade vendem livros de colorir já inteiramente coloridos, numa proposta que ainda não entendi muito bem. Minha irmã desenvolveu uma tendinite na tentativa de se desestressar com a atividade. Um amigo ficou 4 dias com torcicolo. Pessoas argumentam contra e a favor, de um lado os que julgam os livros de colorir infantilizantes, de outro os que defendem gestos analógicos, lúdicos e silenciosos. Vejo discussões acaloradas nas redes sociais, análises de especialistas, desabafos e radicalismos parecidos com as discussões políticas recentes. Não são só meus hormônios que estão malucos, afinal, e arrisco a dizer que somos todos o narrador do conto do Caio F.

Acendo a luminária da escrivaninha, localizo um CD que milagrosamente ainda não foi atingido pelo meu cabelo, mas de repente faz muito mais sentido ouvir “Total eclipse of the heart”: “Once upon a time I was falling in love, now I’m only falling apart.” Algumas músicas são temáticas, não tem como negar. A Suruba para colorir é um pouco decepcionante, confesso, mas vou em frente com afinco e depois de 2 ou 3 páginas consigo entender o apelo. Colorir é legal, e se pudéssemos fazer isso entalados no trânsito da Rua São Clemente seria maravilhoso. Mas ao mesmo tempo concluo que cortar cebolas ou ver as roupas girando na máquina de lavar enquanto tomo uma cerveja têm, sobre mim, o mesmo efeito da nova mania nacional. Mas acho que Odara mesmo eu vou ficar quando aspirar cabelos com o meu novo Bleck and Decker que chega dentro de 2 dias e que vai liquidar os fios de todos aqueles cantinhos mais inatingíveis dos meus cômodos. Talvez seja uma sorte mesmo ser cabeluda. Cada um com seu Rivotril.


juliawah.png
JULIA WAHMANN
Editora de literatura e colunista do ORNITORRINCO