EU JÁ ERA – GUGA FERRAZ


A rua Itapirú 1453 é uma sede náutica onde muitos navegantes se encontram. De lá se vê o Querosene e parte do São Carlos. Há pés de paineira, mamão, pau-brasil, ganja e uma criação de borboletas dentro de uma garrafa de vidro. Também percebe-se pedaços de tinta nas paredes, dourados, vermelhos, pretos, com a forma vazia de centenas de sujeitos correndo. A pequena mesa é um skate sem rodas onde dorme um pequeno boneco de madeira estilo Falcon com mãos que se movimentam. Na parede o retrato de um velha senhora, meio barro, meio ouro, e um incêndio generalizado sendo elaborado no grande compensado. A rua Itapirú 1453 é uma vila onde moram vários amigos, e também é onde fica a casa do Guga Ferraz.

A televisão sempre fora de foco é apenas uma paisagem estática para tudo que acontece ali. De ensaios greco-carnavalescos-dionisíacos até a lapidação de isopor, madeira e massa de cal em formas que compõem o extenso trabalho. Guga é skatista na essência, e o seria mais ativamente se os joelhos deixassem.

No outro lado da rua o botequim é sempre cheio. Churrasco na calçada, rodas de pagode nos fins de semana e uma maquininha de bingo onde muitos perdem trocados na esperança de um pouco mais. Para qualquer problema de secura, basta atravessar a rua e voltar para a ilha. Tudo sempre gelado.

Foram 14 anos de Santa Tereza até singrar para o Long River. E os gatos foram junto. Agata nasceu em Santa e foi para o Rio Comprido com Tarja Preta pai. Tarja morreu, mas logo viria Tarja Preta filho, assim como Jarina. Ambos nasceram no mesmo dia.

Fazer ação junto, no coletivo, como algo natural e prioritário. Desde os trabalhos no Prata da Casa, cruzamentos com poetas e artistas de outras áreas da cidade até fazer com que o conhecimento adquirido no Fundão fosse compartilhado para além da ilha, ou seja, o Projeto Desilha. Desilhar a ilha do Fundão para cidade. Espalhar pela escadaria da Joaquim Murtinho dezenas de sacos de cal gigantes com a imagem do Cristo Redentor. Papel do bom com a imagem do Jesus carioca. Ação conjunta na fenda, no nervo.

Guga Ferraz

O projeto Atrocidades Maravilhosas já faz quinze anos. Proposta de Alexandre Vogler que reuniu vinte artistas em uma ação pela cidade colando lambe-lambes em locais específicos, sem autorização, sem permissão, na fervilhante necessidade de se fazer algo coletivo, pela falta de espaço na cidade, sem fazer pirueta para as galerias, afetando a população de maneira direta, efetiva e afetiva.

Estar na rua, na polis, como lugar fundamental para a expressão. “Gosto de uma parada que o Vogler fala sobre o Atrocidades que resume bem o que é, o desenho no papel e na parede podem ter a mesma potência, mas na parede mais pessoas vão ver”.

O notório Onibus Incendiado é de meados de 2003, 2004, com adesivos que eram colados nas placas de ponto de ônibus. Essa apropriação poética da simbologia pictórica da cidade que chegou a ser confundido até com apologia ao crime (!). Conceito de cidade afetada, diria até, ocupada.

Porque falar do Atrocidades depois de Cidade Ocupada de Ericson Pires, seria um esforço incompleto, visto que o poeta “foi o que conseguiu captar tudo aquilo no meio da confusão toda”.

Então o sujeito passa pela rua e vê uma pessoa dormindo em uma calçada e por compaixão deixa ao lado uma garrafa de cachaça. Seria uma descrição normal não fosse a pessoa uma serigrafia colada na parede. A estupefação de quem vê em um poste Compro Sua Alma, Vendo Minha Pele, ou mesmo quem passa pelo elevado Paulo de Frontin e consegue ver o céu azul cheio de nuvens através do concreto sujo.

Esse complemento poético do que não há, ou do que não há mais. Como na reconstrução do Morro do Castelo dentro da galeria do Gustavo Capanema, a visão trágica de dezenas de cabeças amontoadas no canto d'A Gentil Carioca, ou na parede do lado de fora da mesma galeria, anos antes, uma beliche múltipla chamada Cidade Dormitório, onde muitos se serviram da rara oportunidade de dormir em uma cama, quando o chão sempre foi a única alternativa.

A deslocação do corpo pela cidade como algo essencial e orgânico para a cartografia expansiva afetiva que existe. Fundão, Santa Tereza, Rio Comprido, Arpoador, Botafogo, Jacarepaguá, tanto mais a dizer, tanto mais a percorrer.

Infelizmente não existe bala perdida, o que existe é bala achada. Uma trágica e corriqueira realidade transformada em uma espécie de símbolo que se reatualiza a cada ano. Fuzis AK-47 coloridos, parecendo doces, o Rio de Janeiro em chamas como a anunciação de uma catástrofe que só aumenta. Tudo é realidade, tudo é poesia, tudo é facada.

Mas há espaço para ser uma bola de pinball perfeita. Percorrer o Brasil pelo rio Amazonas até desaguar em Magé e pelo coletivo afirmar o que se pensa e o que se faz no mundo. Estar junto é a ação mais importante. Diante disso, resta essa condição fundamental de existência, quando o corpo precisa se movimentar pela cidade, se expandir e pertencer ao meio como o meio pertence ao corpo.

A rua Itapirú 1453 é um ponto de convergência afetiva necessário, assim como a Joaquim Murtinho 616, o Armazém São Thiago, a rua Gonçalves Ledo 17 e outros tantas esquinas, praças, ruas e becos da cidade que servem de cenário vivo para a constante criação de mundo que é preciso acontecer a cada a dia. E como dizia o poeta “Gritar uma supernova segundo. O Amor Brilha”. Travessia.


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PEDRO LAGO
Poeta e colunista do ORNITORRINCO