DIÁRIO DO FILME 'HOMEM LIVRE' - PARTE III




Da arte do desapego ou Um filme é de todos assim como de cada um

A coisa mais curiosa pra um roteirista (tá, não sei se é A mais, mas é bem curiosa) é ver como as outras pessoas se apropriam do que você escreveu. Na própria escrita do roteiro, a gente tenta direcionar muitas coisas que não são exatamente trama ou diálogos, mas orbitam em torno da história e exercem influência no enredo e nos personagens.

As descrições no roteiro podem dizer como é o cenário, o figurino e o jeito de falar dos personagens. Podem também induzir o diretor a decupar a cena de determinada maneira.

Mas tudo isso fica no campo da possibilidade. Na prática, cada artista em seu departamento vai apropriar-se do texto segundo sua ótica, que, às vezes, pode diferir muito do que pensou o roteirista. Muitas vezes pra melhor, e o roteirista não pode ser vaidoso a ponto de evitar enxergar essas ocasiões.

Além do mais, as descrições no roteiro nunca são totalmente detalhadas, todo mundo tem que pensar em muitas outras coisas além do que está escrito. Ainda bem, porque seria um saco ler um roteiro que descrevesse minuciosamente as manchas na parede, o desgaste dos móveis e o carpete do chão. Um simples “um quarto precário” já dá conta da idéia e dá margem para a direção de arte e a cenografia criarem a partir do roteiro.

Filmagem no quarto do personagem Hélio.
No filme Homem Livre, por exemplo, há um ambiente muito importante que é o quarto do protagonista Hélio Lotte. Nesse quarto, a descrição do roteiro trazia adjetivos indicando que não era usado há muito tempo, e mencionava os objetos com os quais o personagem tem alguma interação. Microondas, televisão, armário. Isso tudo estava no roteiro., sem maiores especificações.

A direção de arte pegou essas poucas informações essenciais e entregou muito mais. A parede verde com tinta manchada e descascando me diz muito sobre a história daquele quarto nos últimos anos e seu estado de abandono. Enquanto a cama feita e os móveis organizados indicam que, ainda que ultimamente em desuso, aquele quarto fora preparado por alguém pra receber Hélio Lotte.

Hélio em seu quarto.



A direção de arte expandiu o que o roteiro já propunha (aliás, vale registrar, a direção de arte é de Patrícia Ramos, assistida por Sílvia Rumen).

Também me deparei com situações de mudanças mais radicais em relação ao roteiro, como, por exemplo, no momento de escalar o ator para o personagem Miranda. Ao escrever o roteiro eu tinha pensado em alguém com cerca de 60 anos que fizesse um tipo bicheiro suburbano carioca. A primeira mudança grande foi a escolha (feita por Alvaro, diretor, e Felipe Vidal, produtor de elenco) de Márcio Vito pro papel. Uns 20 anos mais novo do que o esboçado no roteiro.

Só que, nesse caso, já de início me empolguei com a mudança. Além de acha-lo um tremendo ator, ele tem feições marcantes que jogavam um desenho diferente ao personagem – e bem menos previsível do que o que eu havia imaginado antes. Essa impressão só fez melhorar quando vi os primeiros ensaios, com Márcio Vito tomando outro caminho de performance, passando longe do tipo bicheiro (que, mea culpa, estaria muito mais perto do clichê). Márcio foi por um caminho muito mais interessante pra chegar exatamente no cerne que eu queria do personagem: enigmático, ambíguo.

O elenco como um todo, na verdade, dá uma cara muito particular a cada personagem e, às vezes, é só uma questão de se acostumar. Eu não escrevo (pelo menos não nesse caso) com atores na cabeça, mas é inevitável você “interpretar” todos os papéis enquanto escreve. Eu não elaboro muito feições, mas penso numa cadência de fala, num ritmo, em trejeitos. Que, provavelmente, são inspirados em alguém, mas que eu não paro pra, conscientemente, registrar a influência.

Assim, quando me deparo com a “vida real”, isto é, o filme sendo rodado, preciso me desligar de todos aqueles estilos de interpretação que povoaram minha cabeça (a não ser que seja algo específico e relevante ao personagem, mas, se for, estará detalhado na rubrica). Em Homem Livre, por exemplo, eu imaginei um Hélio Lotte muito parecido com o que Armando Babaioff está fazendo. Tenso, desconfiado. Já a personagem Jamily veio uma malícia velada sob a aura de inocência, característica trazida pela atriz Thuany Andrade e encampada pela direção, que eu não tinha tão claro na mente, mas que deixou a personagem mais relevante na troca com Hélio.

Hélio e Jamily

O roteirista é um desapegado, mesmo que na marra. Neste caso eu estou muito à vontade por estar muito próximo da direção e confiar muito na equipe que está trabalhando. Sei que, se quiser ter uma carreira prolífica, muitas vezes o desapego será total depois da entrega do tratamento final, e certamente irei me deparar com decisões de outras áreas da produção que me desapontem.

Frequentei o set na semana inicial de filmagens. Primeiro, para ter certeza que é verdade e que o filme, enfim, está sendo rodado. Ansiedade e curiosidade de marinheiro de primeira viagem. Segundo, pela satisfação que é ver algo que só existia no papel (e na sua cabeça) ganhando cores, texturas, vozes, rostos, vida, nas mãos de gente talentosa e dedicada que se inspirou e se entusiasmou com algo que você escreveu.

Cinema é arte de expressão coletiva. Acho que essa foi a lição mais importante que aprendi na faculdade.


Pedro Perazzo é roteirista e colaborador do ORNITORRINCO.