DEIXAMOS DE SONHAR ACORDADOS?


A capa original do livro “24/7 - capitalismo tardio e os fins do sono” traz um recorte sobre a imagem de um edifício, sua fachada e suas janelas empilhadas. A repetição sugere uma padronagem, remete à muitas serialidades, nas formas de morar, no trabalho, na construção dos edifícios. As luzes do interior dos ambientes seriais do edifício estão acesas, indicam atividade adentrando a noite. O livro começa aí. A vontade avançar com a atividade produtiva para dentro da noite, de romper com a ausência de luz provocada pelo sol que se pôs anuncia, para Crary, o início da modernidade. Acompanhamos em seguida o desenvolvimento do ponto central do livro: a condição produtiva, contínua e incessante de todo o tempo útil do homem contemporâneo.

Não é esta a capa que reveste a edição brasileira, mas tampouco a alteração tira o mérito do instigante ensaio de Crary sobre as condições de vida e produção do mundo contemporâneo, e suas indicações para aspectos críticos de um futuro próximo.

Presenciamos cotidianamente um limite claro: deitamos sob o suspiro de uma última notícia no whatsapp, de uma última atualização no facebook, no instagram e demais redes sociais; acordamos e a olhos meio abertos verificamos as últimas notícias que porventura tenhamos perdido por fechar os olhos antes dos amigos, familiares, conhecidos. Não nos levantamos e já fornecemos dados sobre nós, a velocidade de nossa leitura, nossos horários, hábitos e preferências. O sono configura-se em primeira instância, em nosso espaço coletivo de liberdade: “é uma interrupção sem concessões no roubo de nosso tempo pelo capitalismo”, diz Crary.

Quatro capítulos destrincham o sono, o sonho e a noite entremeados às repercussão que sobre elas recaiu o capitalismo tardio. Já no primeiro capítulo, somos lembrados sobre como a modernidade proporcionou seguidas rupturas com os ciclos da natureza, e como o adormecer à noite e acordar pela manhã segue sendo um elo que mantemos com a pré-modernidade, nosso passado rural e também com nossa frágil condição de seres vivos, dependentes de condições mínimas para sobrevivência, dentre elas o repouso. “O sono é uma afirmação irracional e intolerável de que pode haver limites à compatibilidade de seres vivos com as forças supostamente irresistíveis da modernização”, diz Crary.

O termo 24/7 refere-se a uma expressão corriqueira da língua inglesa que significa “vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana”, ou seja, o tempo todo. Não foi escolhido por acaso. Crary expõe a barreira que o sono ainda oferece ao avanço do capitalismo tardio, por ser um estado de devaneio, quanto todo o tempo de espera e distração está sendo submetido a um controle (tecnológico); e de rompimento, quando “a realidade bastante diversa de nosso tempo se caracteriza pela manutenção calculada de um estado de transição contínuo”. Crary afirma que, se algum dia acreditamos que os avanços tecnológicos que presenciamos nos últimos anos se consolidariam, e a partir daí passaríamos por um momento de transição para um novo paradigma da era digital, hoje já podemos constatar que jamais haverá um momento em que “alcançaremos” tal estado, e que, como escreveu Marx, a “revolução contínua”, ou a “simulação contínua do novo” é intrínseca à manutenção do capitalismo.

Na cidade, espaço manifesto do cotidiano coletivo, o 24/7 vem junto à institucionalização e especialização dos espaços públicos, infiltrando-se nos momentos restantes de imprevisibilidade, nos lugares onde a espera é o tempo suspenso compartilhado por todos, mesmo na mais banal das filas. Sobre o filme D`Est (Do Leste) de Chantal Akerman, de 1992, Cracy comenta: “Mas uma de suas realizações mais reveladoras é também mostrar o ato de esperar como essencial para a experiência de estar junto, para a possibilidade incerta da comunidade. É um tempo no qual encontros podem acontecer. Misturada às contrariedades e frustrações está a dignidade humilde e trivial da espera, de ser paciente por respeito aos outros, pela aceitação tácita do tempo compartilhado por todos. O tempo suspenso, improdutivo da espera, de esperar nossa vez, é inseparável de qualquer forma de cooperação ou reciprocidade”.

Hoje a espera é um tempo preenchido, respondemos mensagens urgentes, ou não, atualizamo-nos sobre os últimos e-mails de trabalho, ou de lazer, passamos os olhos sobre as últimas imagens fascinantes do instagram, ou outras nem tão importantes assim. Deixamos de sonhar acordado? Deixaremos de sonhar acordado? No belíssimo filme Waking Life ouvimos: “Já é ruim o suficiente que você venda sua vida enquanto está acordado por um salário mínimo, mas agora eles conseguem seus sonhos de graça” (It´s bad enough that you sell your waking life for minimun wage, but now they get your dreams for free). Com a habilidade de conciliar a uma linguagem acessível e a situações cotidianas, conceitos complexos e ideias de autores diversos, de filósofos a cientistas, Crary nos convida a refletir sobre que condições nos colocamos conectados. Em quantos momentos de nossa vida nos damos ao luxo de ignorar o celular, as redes, as informações, as luzes artificiais das telas artificiais para observar o nosso mundo entorno? Quando podemos de fato sonhar acordados?


Luísa Augusta Gabriela Teixeira Gonçalves é Arquiteta, urbanista, estudante, pesquisadora.