EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO


Proust pensando no que ia fazer num sábado à noite qualquer.


















Abro os olhos e ainda está escuro. Minha janela tem um blackout que deixa o quarto um breu.  São 13:30 da tarde, um domingo. Fiquei revirando na cama, mergulhando no cheiro delicioso da pele e do cabelo da minha namorada. Quando decidi me levantar: 13:30.

Saí da cama meio mal, com um sentimento como que arrependido de alguma coisa.  Parecia que tinha alguma questão fundamentalmente errada em acordar tarde. A sensação foi: Perdi o dia, perdi tempo, tenho que fazer alguma coisa hoje, tenho que aproveitar o resto do dia, em busca de um tempo perdido... Achando que iría encontra-lo.

Vivemos uma epidemia do fazer. É quase impossível você só existir por algumas horas do seu dia. Tudo que a gente "tem que" é com hora marcada para fazer. E as horas não páram, o tempo não pára, time is money é o que dizem né? Em uma época em que tempo é dinheiro não é a toa que ninguém quer "perder" tempo com coisas "bobas", corriqueiras e que não geram rendimentos,  como uma caminhada lenta observando qualquer paisagem, ver um por do sol, tomar um banho tranquilo ou como dormir sem hora pra acordar com sua namorada. Tempo pode até ser dinheiro na visão de alguns, mas um fato acima de pontos de vista: dinheiro jamais será tempo.

Dinheiro. Muitas vezes nem percebemos, mas o Capitalismo nos injeta sutil, ou abertamente, a obrigação desse tanto fazer com hora marcada.  Esta obrigação fica tão impregnada que tive uma semana de mini-férias, fui pra Petrópolis, um frio opressor me obrigou a ficar em casa e eu fiquei meio ansioso: não sabia o que fazer com o fato de não ter hora nem obrigação de fazer qualquer coisa. A gente diz "matar o tempo" em várias línguas, já parou pra refletir como essa expressão é ruim?  

Ainda nessa semana Serra, meu sobrinho de 10 anos e um amigo reclamavam constantemente que não tinham coisas pra matar o tempo: "Não tem nada pra fazer, Titi!" Sinto que a geração deles perdeu ainda mais a capacidade de só existir, criar, brincar ou inventar, usam de forma deturpada as milhões de opções tecnológicas á disposição deles, estão ainda mais impregnadas com a obrigação de "fazer coisas" o tempo todo. Parece que essa tecnologia, que poderia ser aliada, acaba sendo transformada numa babaca na nossa vida.


Por exemplo: A velocidade e variedade das nossas formas de se comunicar se acelerou, mas geralmente, ao invés de facilitar nossa comunicação esse excesso de possibilidades criou não só uma urgência de respostas de emails, mensagens de whatsapp, redes sociais, mas também ansiedades relacionadas. Você quase não tem mais o direito de receber uma mensagem de whatsapp e responder no seu tempo sem ser cobrado. Ter acesso a várias formas de se comunicar não deveria ser equivalente a esta quase obrigatoriedade de estar sempre disponível e afim de se comunicar com velocidade, mas é.

Outro exemplo são os meios de transporte. Hoje, viajamos do Rio pra Petrópolis em uma hora, antigamente levava um dia ou mais. Tecnicamente esse aumento na velocidade, sería pra podermos ter mais tempo, porque, sim, a tecnologia de várias formas suprime as distâncias, então deveríamos ter mais tempo, viver mais e melhor, só que vivemos apenas mais depressa, mais ansiosos e com mais pressa. As máquinas foram feitas pra poupar nosso tempo, e poupam, mas a gente tem que gastar esse mesmo tempo pra produzir mais, fazer alguma coisa e de preferência fazer mais rápido.mas daí viajamos em um ritmo frenético, tenso, em alta velocidade (e olha que eu não ando muito acima de 100km/h em geral) e apesar disso parece que temos menos tempo. A vida acaba virando essas viagens de hoje: uma estrada de alta velocidade em que tudo parece que flui mais rápido, mas o custo é uma paisagem cheia de detalhes ricos que passa despercebida.

Ainda no frio de Petrópolis fiquei sem fazer várias coisas, como por exemplo: tomar banho. A ironia é que eu não estava fedendo, nem sujo. Mas por causa dessa vidacronometradatimeismoney, tomar banho foi se transformando numa lavagem automática com hora marcada, ao invés de um ritual delicioso de limpeza do nosso dia. Assim, não senti falta de tomar banho justo porque estava perdendo o prazer, sem tempo para tomar um banho com toda a calma. No fim do segundo dia de porqueira lembrei de tomar banho. Usei o Rexona do meu cunhado e tive algumas epifanias.

Rexona é barril dobrado, como se diz lindamente na Bahia. Fede, deixa uma pizza amarela dura no suvaco das camisas, é caro, dá câncer e nos estimula a usar errado nosso tempo. Rexona lançou uma campanha com um slogan que se usa muito entre os publicitários: Faça mais. Considero uma das propagandas mais idiotas dos últimos tempos. Além de mini-cenas bem ridículas e clichéziadas, reforça uma tendência burra do nosso sistema : fazer mais. Fazer mais?! Perá lá. Com essa vida modernosa cheia de tecnologia não seria melhor a gente fazer menos e em menos tempo? Não venham me dizer pra fazer mais, publicitários de Rexona. 

Ninguém dessas fotos usa Rexona, é nítido pelos sorrisos.

Um outro fator pra essa vida modernética de fazer mais é que a semana é muito mal dividida. Se você não for político trabalha cinco ou seis dias e tem um de folga. Certo seria quatro dias de descanso no mínimo. As pessoas riem quando eu falo isso, como se fosse algum absurdo o que eu digo, quando o real absurdo é a forma que a gente se acostumou a achar normal.  6 para 1. Tá certo isso? No mínimo tinha que ser 4 de trabalho e 3 de folga. Pra todas as profissões do mundo, no mundo todo. Colapso da economia ? Falta de comida? Falta de produtos? Será? Insisto que a gente anda produzindo, comprando e comendo demais.

Essa nossa ilusão de normalidade, vem de um raciocínio lógico sem muita lógica: Oito horas de trabalho, oito horas dormindo, oito para a nossa vida pessoal. Parece equilibrado. Dormimos oito horas, metade das horas acordadas para o trabalho e, com o dinheiro que recebemos, fazemos o que quisermos da nossa vida. Só que não acontece bem assim, né?

Pra começar, o tempo em que estamos nos organizando para trabalhar (isso contando que você não é um dos milhares que demoram 3, 4 horas só no trajeto de ida e volta ao trabalho, fato comum em São Paulo) e o tempo em que estamos desopilando de ter trabalhado tem que ser subtraído das nossas horas de lazer. Então sobra bem pouco, e o pouco que sobra também já está bem comprometido e decido como será usado por você, só que é tão maquiado e naturalizado que muitas vezes a gente nem se dá conta.

Quando não estamos produzindo nessas nossas míseras horas de lazer, tem toda uma indústria produzindo, criando em nós a necessidade de não parar, de nos entreter, consumir e fazer mais. Fazer com que as pessoas tenham menos tempo livre é uma armadilha muita ardilosa: ainda mais em cidades como São Paulo, nos parece merecido, necessário e natural pagar mais por conveniência, prazer, objetos de consumo e qualquer outro alívio que o dinheiro possa comprar. E como conseguimos mais dinheiro? Vendendo mais nosso tempo. Pronto, caiu na armadilha. 

Apesar do que possa parecer, este não é um texto anti-Capitalismo. O Capitalismo não cria necessidades na cabeça de ninguém. Nós criamos, nós é que depois de uma semana de trabalho, de vender nosso tempo e não parar, sentimos e de alguma forma alimentamos essa quase obrigação de ter que fazer alguma coisa no nosso dia de folga. Ficar em casa sem  fazer nada? Jamais. Quantas vezes você já se perguntou ansiosamente no seu dia de descanso: o que eu vou fazer hoje? O que tem pra fazer hoje? Somos seres humano, mas tem sido bem difícil só ser, sempre temos que fazer, fazer e fazer.

Se é pra fazer alguma coisa sugiro que façamos o seguinte: O dia passa a ter 12 horas só, cada 2 horas antigas equivale a uma, assim tudo ficaria mais lento. Duas pessoas de cem anos me disseram a mesma coisa sobre sua longevidade saudável: um dos segredos é fazer menos e com mais calma. Não sou a favor da longevidade a qualquer custo, mas sou a favor de qualidade de vida e de usarmos melhor nosso tempo.

Esse tempo veloz moderno é uma prisão sem parede e já estamos condicionados a nos aprisionar: acordamos, pegamos e acompanhamos algum marcador de tempo. Mesmo quando não temos hora pra nada quantas vezes ficamos olhando as horas, marcando o tempo? Percebo que uma das principais razões de não fazermos as coisas com mais calma é termos um (ou mais) relógios ou marcadores de tempo pra nos enclausurar voluntariamente em toda essa engrenagem. Porque quando nos dão um relógio, nos dão a prisão de medir o tempo e estar on time, full timeO relógio não é o presente, você que é oferecido como presente de aniversário pros relógios, estes pequeños infiernos floridos, como disse Cortazar.

Para um relógio os dias talvez sejam iguais, mas não para um ser humano. Até onde eu sei, eu, você e Proust somos seres humanos. Proust, o mesmo que escreveu "À la recherche du temps perdu" o mesmo título desse texto, uma bíblia de 3 mil páginas que ironicamente aborda a relação do homem com o tempo e com a memória. 


Estudiosos de Proust, que como eu perderam muito tempo lendo esse livro, falam "que faltam séculos de exegese para que se compreenda o significado maior da obra Proustiana - para que se vá além do tempo perdido na leitura de tantas páginas." Baboseira. Não perca seu tempo lendo o meu texto, muito menos lendo Proust. Já é tarde demais. Você está atrasado pra voltar a viver, fazer e fazer e fazer, hora de contar e vender seu tempo. Mas se ler e se arrepender, não procure pelo tempo perdido, você não vai encontrar.


franco.pngFRANCO FANTI
Roteirista, dramaturgo, ator e colunista do ORNITORRINCO