I NEVER CAN SAY GOODBYE


1. Todo o propósito daquele lugar era a piscina e ainda não era fim de festa quando alguém me interceptou pelo caminho até o banheiro e sugeriu “vamos?”. E fomos. Eu estava de calcinha, com a parte de cima de um biquíni e um cabelo que não me pertencia, porque era carnaval. Outros foliões se juntaram a nós, o marido de uma amiga fez comentários indiscretos sobre algumas bundas expostas e o pagode começou a tocar porque de repente o tempo passou e tudo já começava a acabar. Um coro de Raça Negra despontou com o sol, negociamos toalhas com os donos do local quando os dedos enrugaram e no meio do caminho para um café da manhã coletivo percebi que estava cansada demais até para um milk-shake. Desovei pessoas pelo Jardim Botânico dificultando a volta deles para casa e dormi com cheiro de cloro. A fantasia não pedia rímel, graças, porque isso sim seria uma ressaca das brabas, ter que lavar fronhas, toalhas e o que mais ficasse manchado pelas marcas desse cosmético que só serve para borrar as coisas.

2. Era Reveillon e parecíamos uma banda em fim de turnê, esparramados pela sala admirando uma vista da qual morremos de saudades. Foi pouco antes do êxodo que espalhou aquele grupo pelo mundo, e foi quando, minutos antes de declararmos o fim definitivo daquela noite, alguém que seria o guitarrista alucinado daquela trupe acariciou as costas de M. numa tentativa errada de afagar B., porque já não havia possibilidade de enxergar as pessoas ou o gênero certo. Para a derradeira despedida, o mesmo pseudo-guitarrista encheu os bolsos dos últimos bombons que habitavam o pote à sua frente, num gesto que pareceu ensaiado em câmera lenta justamente numa pausa das gargalhadas já meio roucas. Saiu cambaleando se acabando no cordão, alguém se aninhou numa poltrona e de repente jarras e mais jarras de água surgiram como num milagre ressuscitador de todos nós que, já sem a aura do palco, àquela altura parecíamos zumbis vestidos de branco, o sol brilhando no céu e algo de Buñuel no ar, ninguém mais conseguia ir embora.

3. C. só voltaria pra casa depois que o metrô reabrisse, J. na varanda não dava pra saber se era flerte ou aquela droga que parece não sair de moda ("Não era amor era cilada", cantavam aqueles rapazes nos anos 1990) e no sofá, desconjuntada, Amy Winehouse quase não cabia. Tirei as meias e as botas depois que enfiei a última dupla de sobreviventes no elevador e inundei de água e sabão o chão da cozinha. Meu look de Walter White no primeiro episódio de Breaking Bad continuava mais ou menos digno, embora tatuagens temporárias ocupassem parte do meu rosto e das pernas. Era fevereiro, a faxina pode ser refrescante e por via das dúvidas deixei um balde ao alcance de Amy.

4. Num tempo em que boa parte de nós ia e vinha pelos ares, bolsas-sanduíche e fugas – e portanto já não sei dizer se era chegada ou partida de alguém – nos reunimos na cobertura do pai de R., que além de ser ponto de encontro parecia uma galeria de arte contemporânea onde o gato Aderbal escalava um quadro do Kracjberg. Usávamos casacos e improvisamos uma quadrilha na sala, até que alguém teve a brilhante ideia de mostrar para as convidadas vindas de Singapura como é que se faz. Foi assim que fomos parar dentro de uma enorme jacuzzi sem água que ficava na varanda do terraço, dançando animados as últimas músicas daquele ipod com volume tão baixo, embora pouco importasse.

5. Saíamos daquela boate esquizofrênica que conjugava dançarinos vintage de passinho e strip-tease quando ela me obrigou a parar na praia. A gente morava numa vizinhaça distante e mal vista, e essa foi só uma das razões porque ficamos inseparáveis. Até a boate, onde meu coração foi estraçalhado por aquele sujeito que ficou aos beijos com outra, sofrêramos um assalto em Botafogo. Não exatamente: arrombaram o carro enquanto bebíamos no bar e levaram, além dos cds num ridículo case de abelha, o figurino do curta de um amigo. Outras coisas se rasgaram naquela noite, como o vestido de C. e as costuras do jeans de F. ("Everybody was kung fu fighting", parece). Ela me obrigou a entrar no mar num frio de julho, o carro destrancado e meio torto numa vaga, e fui inteligente o suficiente pra tirar a calça de veludo. Quando voltamos para o Fiat que alagava em qualquer chuva ela apertou play na trilha sonora de Grease, percebi que faltava um sapato, deixamos um terceiro elemento em Ipanema e cantamos os pulmões até cair na cama do outro lado do túnel.

6. O mundo era feito de vodka tônica, de celulares Nokia, de noites intermináveis no 00, mas que eventualmente terminavam com pão de queijo numa casa no Joá. Era o aniversário de B. e ela ficou maluca a ponto de fazer todo mundo beijar o Capitão Haddock, seu então chaveiro. Talvez eu tenha sido meio insensível, mas o caso é que voltei pra casa mais cedo dirigindo o carro dela, que permaneceu na festa com o resto do grupo. O mundo era feito de Orkut também, e daquela tática de deixar mensagens ocultas por meio de um testimonial que jamais seria aceito, e porque ela tinha esquecido o celular no carro achei que aquela seria a forma mais imediata de comunicação: expliquei tudo e deixei o número do meu telefone, que começou a tocar loucamente às 9 da manhã. O dia seguinte foi como Cara cadê meu carro, não que tivéssemos assistido o filme. Era o auge da minha hérnia de disco e da coreografia de “Praise you”, que ela executava com a desenvoltura de alguém que não tinha nenhuma vértebra afetada. Eu acabava sempre aceitando o convite dela para almoçar, e ia dopada de Tylenol e anti-inflamatório encher a cara de suco de tangerina no Gula Gula mais próximo.

7. É sempre perto de 4 da manhã quando baixa uma nazicleaner e, desde que me tornei a dj oficial da festa de um ou dois amigos, me divido entre o som e a arrumação da casa. Mas não me contento em fazer isso sozinha, acabo convocando gente que não tem nada a ver com a história. Era perto de 6 quando alguém declarou que nunca havia testemunhado um fim de festa com tanta gente prestativa e vestida e a gente riu. A playlist intitulada “restos” vinha bem a calhar: “Is this love, is this love, is this love, is this love that I’m feeling”, cantava o Bob Marley, numa música que passei a valorizar de uns anos para cá, desde que comecei a concordar que simpatia é, de fato, quase amor. Assim como massagem, cafuné e as 3 ou 4 mensagens que você envia no dia seguinte ainda meio bêbada nessa idade em que a ressaca só chega 2 dias depois, porque é cada vez mais complicado se livrar do álcool, do rímel e de gente linda que – contrariando as matinês pré-adolescentes em que você se via agarrada a uma vassoura –, com um pouco de sorte e um setlist invejável, te tira pra dançar a clássica do Lenny Kravitz para esses desfechos em que os sapatos estão chutados para debaixo de alguma cadeira: “Here we are still together”, etc.

8. Estabelecemos a tradição do hambúrguer de domingo, porque sempre é domingo, onde fazemos uma espécie de reconstituição dos fatos (nosso very own CSI), de lembranças desencontradas e retalhos que quando juntos dão outra dimensão a essas noites memoráveis e manhãs gloriosas cheias de buracos, joanetes doloridos e hematomas que ninguém sabe de onde surgiram. Quando acho que já computamos todos os danos da festa – das pinimbas com a vizinha debaixo até o vinho no notebook – M. ri divertida entre juras de sobriedade eterna e baldes de café com a certeza de que os estragos ainda nem começaram, tudo por causa dessa mania que a gente tem de se apaixonar temporariamente no meio da pista de dança. É quase como se algumas coisas só começassem depois que terminam.

9. Isso sem falar de todas aquelas cenas constrangedoras em que alguém segura os cabelos de outra pessoa pra ela vomitar sem tantos percalços – seja no banheiro da sua casa enquanto você se pergunta por que a sua amiga resolveu fazer isso na pia, e não no vaso, seja no meio da Rua Lopes Quintas enquanto seu amigo erudito também impede que você caia dentro de um canteiro de plantas
– e que fazem parecer que todo fim de festa é um misto de autodestruição e filme de terror com pedaços de gente despencando.

10. E fora toda a bolinha de queijo do Jobi, aquele mar de gordura quando já ninguém mais se entende e, no meio de uma tentativa de fazer as pazes, sem querer ele arranca lantejoulas do meu vestido, porque, parece, nem todos os avisos irão evitar o Carnaval, os abraços meio selvagens, os domingos, a bagaceira e o demaquilante que te catapulta pra emergência médica mais próxima.

11. Mas bagaceira mesmo foi chegar na casa de M. muito sóbrios numa noite de verão em que o dj tinha um plano maligno para arruinar a festa. Onde já se viu não tocar Caetano ou Michael Jackson, e ali naquela pista as pessoas pareciam viver num país onde as existências de Madonna e Beyoncé ainda não haviam sido noticiadas. Não nos ocorreu beber para esquecer ou tentar salvar alguma coisa, em vez disso pulamos num taxi, deitamos no chão, porque o apartamento quase não tinha móveis ainda, e amaldiçoamos aquela gente desprovida de endorfina até as futuras gerações.

12. Por fim, também, tem aquele último parágrafo do apanhador do Salinger: “It’s funny. Don’t ever tell anybody anyhting. If you do, you start missing everybody."


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JULIA WAHMANN
Editora de literatura e colunista do ORNITORRINCO